Sonho de verão
Curta história de quem teve coragem e deixou o armário
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emSonho de consumo de qualquer mortal, morar mais pertinho do céu era a desatinada fantasia de Aparício de Melo Rego Neto. Falastrão, articulado, corajoso e com os olhos coloridos desde que deixara o aconchego da barriga da genitora, queria chegar chegando. Sem grana para começar a sonhar com as comunidades (eufemismo de favela) do Chapéu Mangueira/Babilônia, Santa Marta, Vidigal, Rocinha e morros dos Prazeres e dos Cabritos, todas bem próximas do Pibão financeiro, teve de se contentar com o Morro do Peru Molhado, um famoso cortiço da Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Na sua cabeça de mil quimeras, não havia local mais apropriado para o primeiro e utópico Sonho de Ícaro. Também foi a experiência mais importante de sua vida. Ainda bem jovem, em cima do mundo do faz de conta, de cara percebeu que quem mora em favelas vive uma espécie de apartheid do asfalto. Nada que incomodasse o rapazote porreta, cuja nobreza era a padaria de igual nome, onde aprendeu a fazer pão e, nas horas vagas, a queimar a rosca. Faceiro, recuperado da Cura Gay e já com ares de pegador, logo se tornou conhecido do alto ao pé do morro.
Daí para virar líder comunitário, afetivo e sexual foi mais rápido do que engarrafar pum nas alturas. Segunda voz da comunidade ordeira e trabalhadora – a primeira era a do pastor evangélico Gervásio Pedrosa -, Melo Rego e seu complicado perfil de Dom Juan faziam sucesso até em comunidades vizinhas, como a do Rabo Quente. Aparentemente, o passado de craque na punga de braguilha alheia e de agasalhador de croquete estava na mala de recordações. Já homem feito, se engraçou com uma jovem do morro fronteiriço. Era o que faltava para a alegria geral.
O rapaz do Perú Molhado pegando a moça do Rabo Quente. Do romance intenso à beira da tenda dos milagres, loca de desova do tráfico local, ao sonho de verão com a imagem infinita do mar, foram pouco mais de quatro semanas de amor. Pena que, como dizem os entendidos, o que é do homem o bicho não come. Depois de casado, Aparício voltou a solicitar em tempo integral. Abandonou o Peru Molhado, liberou a patroa do Rabo Quente e hoje, poliglota, com os cabelos acaju e as unhas postiças com lindos candelabros nas pontas, é bispo da Igreja Presbicheriana.
É no púlpito do local de cultos que ele prega diariamente as teses de que o amor aceita todas as cores e de que a diversidade é força, não uma fraqueza. Salve Aparício, o grande. Ele tem sido visto com relativa frequência pelas ruas da cidade zoando os antigos amigos que não se assumem. A estes, uma única recomendação na língua que mais gosta: Get out of the closet. Antes que os amigos dos tais amigos saiam desesperados atrás de um dicionário de português-inglês, traduzo a expressão: Saiam do armário.