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Ópera da cebola

Morte é mero desejo de uma outra vida

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Multifacetado desde a placenta, onde, sozinho, aprende a nadar, a comer e a se defender de jatos indesejáveis, o ser humano é, por definição, o mais astuto dos animais. Na essência, o homem (não como gênero) vivencia a si mesmo, seus pensamentos como algo separado do resto do Universo. É uma espécie de ilusão de ótica de sua consciência. Por isso, a gente nasce, cresce, envelhece, embrutece, mas não admite falar em morrer. Interessante porque, filosoficamente, a morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais. Mutatis mutandis, é a vida se confundindo com a ópera da cebola, aquela que vai desaparecendo camada por camada.

Mestre dos mestres enquanto viveu, o jornalista Roberto Marinho não foi apenas o tubarão que jogou nas 11 com a ditadura e defendeu com os dois pés a democracia. Em outras palavras, topou amar a dois senhores, desde que eles lhe garantissem a vida eterna nos rentáveis negócios. Tarefa cumprida, disse certa vez que o dia que morresse, se morresse, estaria em paz com sua consciência e sem dívida com o país e com seu povo. Há controvérsias. Muitas controvérsias, embora nada tenha contra ele como patrão. Foi um dos melhores dos meus tempos de redação.

Não tive oportunidade, mas se tivesse teria dito ao dono do maior império de comunicação da América do Sul que não há espelho melhor que reflita o ser humano do que suas próprias atitudes. Que Deus o tenha no reino dos céus, preferencialmente ao lado de Antônio Carlos Magalhães, seu fiel parceiro e amigo dos anos de chumbo. Citar Roberto Marinho, ACM e a morte é apenas uma simbologia. Ela á a única certeza que temos. Entretanto, preferimos a dúvida. Deliberadamente, esquecemos que a morte e a vida são irmãs. Como diz o pensador Rubem Alves, a reverência pela vida exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida desejar.

Sou adepto da filosofia de Confúcio. Conforme o pensador e filósofo chinês, para que nos preocuparmos com a morte se a vida tem tantos problemas prioritários? Mais incisivo, William Shakespeare dizia que os covardes morrem várias vezes, enquanto os corajosos experimentam a morte apenas uma vez. Tenho um amigo que foge de cemitérios. Não sei se por pavor, crenças ou frescura, mas ele desaparece quando é “convidado” para um velório. Sepultamento? Nem pensar, mesmo que seja de um familiar. E saibam que essa não é uma decisão isolada. Conheço muitos que pensam e agem desse modo.

Dia desses perguntei ao dito cujo o que fará no dia em que ele for o de cujus, o popular finado. “Aí não tem jeito. Serei obrigado a comparecer, sob pena de perder o último quinhão de terra a que fiz jus. Mas irei sob protesto”. Resposta justa e digna de um bravo guerreiro que certamente vai morrer como quem soube viver direito. Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então morrer também vale a pena. Apesar de fã de quem sabe pensar, prefiro os poemas de Vinícius sobre a morte. Em um deles, o nosso poetinha lembra que “Quem já passou por essa vida e não viveu pode ser mais, mas sabe menos do que eu, porque a vida só se dá para quem se deu, para quem amou, para quem chorou, para quem sofreu”.

Poucos no mundo viveram tão intensamente como Vinícius, um dos autores do clássico e imortal Garota de Ipanema. Embora não concorde, respeito a tese poética que ele criou sobre o uísque. “É o melhor amigo do homem, daí tê-lo batizado de ‘cachorro engarrafado’”. Além da naturalidade carioca, da expectativa do passamento e da simpatia pela doutrina espírita, tínhamos pouco ou quase nada em comum. Todavia, pensava do mesmo modo quando o tema era reencarnação. A exemplo de Vinícius, caso me seja concedida uma outra vida, gostaria de voltar igualzinho, só com o bilau um pouquinho maior.

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