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Lembranças ao som de Belchior

‘Velha roupa colorida’ provoca alucinação em Ana

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção de Irene Araújo

Ronaldo era muito mais magro do que os demais garotos da rua. No entanto, o que lhe faltava nas carnes, sobrava-lhe nos cabelos, longos, ondulados e oxigenados, o que provocava um contraste com a pele bronzeada, que, naqueles tempos, me atraiu. Bonito? Talvez um pouco, mas nada de exageros. Destacava-se dos demais pela altivez, apesar dos ombros caídos.

O jovem, como soube alguns dias após, acabara de completar 20 anos e estava prestes a entrar na universidade. Engenharia civil, sonho muito mais do pai do que dele, que era afeito a passar o dia na praia e, assim que a noite se fazia presente, sentava-se na calçada em frente à sua casa para tocar violão. Não tardava, moças e rapazes se sentavam ao redor até que, um a um, retornavam para as residências, e a rua voltava a ficar silenciosa.

Foi numa quarta-feira, princípio de fevereiro, que tivemos a nossa primeira conversa. Nada além de cumprimentos de pessoas que se conhecem apenas de vista. Todavia, exatamente uma semana após, reencontrei Ronaldo, agora na vendinha do bairro. Ele carregava uma garrafa de refrigerante; eu, duas sacolas repletas de frutas, verduras e um pacote de café.

— Quer que eu ajude a senhora?

Não era muito mais velha que Ronaldo, apesar de não ficar surpresa com a forma que ele se referiu a mim. Estava com 26, mas era casada e, talvez, a ocasião merecesse tal distância. Sorri, mas respondi que não precisava. Virei-me e caminhei cinco ou dez metros, até que coloquei as sacolas no chão e me virei.

— Vou aceitar, sim!

Ele colocou o refrigerante dentro de uma das sacolas e, cada uma em uma das mãos, as carregou até o meu apartamento, quase no final da rua. Subimos pelo elevador e, assim que abri a porta, ele me perguntou onde poderia deixar as sacolas. Respondi que na cozinha, caso não se importasse.

Ronaldo colocou as sacolas sobre a mesa, retirou o refrigerante e se virou para ir embora. Criei coragem e lhe ofereci um suco de uva. Ele se voltou para mim, encarou-me pela primeira vez, quando percebi que seus olhos eram de um castanho quase mel. Não sei se ouvi sua resposta, mas logo estávamos sentados à mesa.

O rapaz me contou sobre sua paixão pela música. Disse que adorava Belchior. Falei que também gostava dele, bem como havia comprado seu último disco, “Alucinação”. Ronaldo me encarou com aqueles olhos tão doces e me falou que estava aprendendo a tocar “Como nossos pais”.

— Vou colocar o disco. Quer?

— Quero muito, Ana Lúcia!

Adorei ouvi-lo me chamar pelo nome invés de senhora. Sentamos no sofá da sala, enquanto a voz do Belchior ecoava pelo ambiente. Ficamos ali por quase duas horas, até que ele disse que precisava ir, pois iria fazer a matrícula na faculdade. A despedida foi com os tradicionais dois beijinhos no rosto, coisa de gente amiga ou que está se conhecendo.

Meu marido chegou à noite. Servi-lhe o jantar e uma taça de vinho tinto. Eu, que desde essa época nunca fui muito afeita a bebidas, também tomei um pouco. Terminamos sob os lençóis e revivemos os dois primeiros anos de casados.

Acordei com enxaqueca, enquanto meu esposo parecia não ter sentido qualquer efeito do álcool. De tão mal fiquei, fechei a porta do quarto para não sentir o cheiro de ovo frito, que ele comia com sofreguidão. Meu marido, não tardou, se despediu com um beijo em meus lábios. Quando retornou naquela noite, me encontrou prostrada sobre a cama. Prometi a mim mesma que nunca mais colocaria nenhuma gota sequer de álcool na boca. Obviamente que, em certas ocasiões, tal promessa foi esquecida.

Levou alguns dias até que esbarrei com Ronaldo na mesma vendinha. Ele estava com uma garrafa do mesmo refrigerante e, assim que me viu, me lançou um sorriso amigável. Perguntou-me se iria precisar de ajuda para levar as compras. Nem titubeei.

Ronaldo e eu, sentados no sofá da sala, enquanto lá estava o Belchior preenchendo os vazios do ambiente com aquela voz anasalada. Ronaldo, de tão descontraído, foi se sentar no tapete. Os cabelos balançando no ritmo da música. Tomei coragem e fui até ele, passei a mão direita naqueles cachos. O rapaz me olhou de uma maneira ainda mais doce, quase ao mesmo tempo que abraçou minhas coxas. Abaixei meu rosto e o beijei.

Nossos encontros se prolongaram por semanas, até que meu esposo recebeu uma proposta irrecusável de emprego. Mudamos para uma cidade na fronteira com o Uruguai, onde ainda residimos. Já se vão mais de 40 anos. Meu marido, que se aposentou há alguns meses, gosta da casa cheia. Nossos filhos, noras, genros e netos sempre nos visitam.

Quanto ao Ronaldo, o nosso último encontro foi justamente num sonho. Ele estava sentado no tapete da sala, os longos cabelos no ritmo da música do Belchior, “Velha roupa colorida”.

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