O amigo americano
‘Hello’ com sotaque diferente que saiu lá de Quixadá
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emPor conta da minha profissão de arquiteto e tendo optado por voltar à minha cidade natal, no interior de Minas Gerais, acostumei-me a ter clientes em todas as cidades vizinhas. Não raras eram as semanas em que saía viajando por duas ou três cidades para acompanhar a execução de projetos ou atender a velhos e novos clientes. Tive a sorte de entrar num nicho bem interessante de trabalho: atender a hotéis e pousadas de toda a região. O turismo estava aquecido, se profissionalizando a passos largos, e várias hospedarias antigas buscavam se reposicionar no mercado hoteleiro moderno – a melhoria das instalações, a beleza, o aconchego e a acessibilidade eram as diretrizes do meu trabalho, sempre buscando conservar a edificação em suas características históricas e originais.
E, nessas andanças, conheci Dona Helena, que herdara dos pais uma velha fazenda, cujas origens remontavam ao ano de 1867. Chamava-se Fazenda do Sossego. A casa, imponente e antiga, tinha a maior parte de suas paredes construídas a pau-a-pique, com tábuas corridas no piso de uma largura impressionante, que passavam sob as divisões dos cômodos. Fiz um belo projeto para a casa principal e aproveitei depósitos próximos para transformar em chalés, além de imaginar a construção de outros anexos. No fim, a Fazenda do Sossego transformou-se num hotel-fazenda que era referência nacional em requinte e beleza.
Volta e meia, Dona Helena me chamava para rever algumas obras e para que eu sugerisse melhorias, tanto no plano externo quanto no interno, pois agora eu contava, em meu escritório de arquitetura, com profissionais especializados na decoração de interiores. E, numa das viagens para atender clientes, terminei a minha rota da semana justamente lá no Sossego, chegando numa sexta-feira à tardinha, pois sabia que Dona Helena iria me convidar gentilmente para passar a noite e me brindar, no dia seguinte, com um belo café da manhã. Era verão, o céu anoitecia de uma forma espetacular, lua cheia, e havia movimento de hóspedes na piscina. Eu resolvi aproveitar um pouco aquela delícia.
Depois de me refrescar, fui sentar-me à borda para tomar uma cerveja gelada e contemplar a noite. Um hóspede jovem, de barba e cabelos ruivos, passou pela minha frente quando ia dar um mergulho e fez um breve cumprimento, ao qual respondi. Ele ficou um tempo por ali nadando e, ao final, passou novamente perto de mim, dizendo “hello”. Imaginei ser um americano, mas seu sotaque era desafiador. Respondi ao cumprimento e também disse “hello”, levantando o copo em direção a ele, como que propondo um brinde.
Ele voltou-se e fez um gesto como quem pedisse para se sentar à mesa em que estava. Creio que tomou essa liberdade porque, nas outras mesas, estavam grupos ou famílias, e eu, como ele, era um hóspede solitário. Disse pra ele: “sente-se”. Mas pensei que, se fosse americano mesmo, não iria entender minha frase. Assim, completei com o equivalente em inglês: “take a seat”. Ele agradeceu em bom inglês: “thank you” – e assentou-se.
Um segundo constrangedor de silêncio, daqueles em que dois estranhos ficam fuçando nos recônditos da consciência para inventar o tema do próximo assunto que um vai puxar com outro, e eu, que me encontrava extremamente enferrujado com o idioma do gringo, quis saber se ele estava gostando do hotel e do interior de Minas Gerais, e mandei pra ele um: “are you enjoing your time here?”. E ele respondeu, com aquele seu sotaque diferente, de forma bem compreensível e em seu idioma, que sim, gostava muito da paisagem e do clima.
Procurei mais uma vez, lá nas profundezas do meu parco inglês, algum vocabulário para não deixar o americano falando sozinho e, não sem alguma apreensão, perguntei se ele já havia feito o passeio de maria-fumaça, que por pouco não saiu “smoke-maria”, à cidade vizinha: “have you did the tour on the old steam train to Ouro Preto?”. Ele respondeu que não, mas pensava fazer no dia seguinte, se os ingressos não houvessem se esgotado.
Seguimos conversando amenidades e experiências de viagem, e descobri que meu simpático interlocutor estrangeiro já havia feito diversas aventuras pelo Brasil e pelo mundo. Seu inglês era bem diferente, não conseguia, pelo sotaque, decifrar-lhe a origem, mas certamente era bom de conversa e muito agradável.
Bebemos uma cerveja juntos e chegamos a dividir um petisco na beira da piscina, até a hora em que nos despedimos. Cheguei em meu quarto com a mente cansada. Aquela conversa toda em inglês havia me deixado esgotado, mas acho que não fiz feio e, fora algumas coisas que não entendera ele dizer, ou que havia procurado expressar por gestos, o papo fluiu bem.
Adormeci rápido e profundamente até o dia seguinte, quando acordei cedo e fui logo para o restaurante do hotel fazer um desjejum dos deuses. Rápido agradecimento e despedida de Dona Helena, pus-me logo a caminho de casa, porque, mesmo sendo sábado, havia ainda muito que fazer naquele dia e não podia perder tempo. Nem lembrei de perguntar por meu amigo americano, a quem não cheguei a dizer “goodbye”.
Semanas depois, passei pela Fazenda do Sossego de novo, para entregar o resultado dos projetos que Dona Helena havia pedido. Lembrei de perguntar a ela sobre o hóspede americano, o jovem ruivo, de barba, de quem ela nada sabia, tendo de informar-se com Amanda, uma das suas funcionárias. Amanda fez uma cara de estranheza enquanto puxava pela memória a origem de meu circunstancial amigo.
“Americano? Não me lembro… Ah, o que ficou com você conversando na beira da piscina uma noite dessas? Americano que nada! Aquele é Norberto, uma figura! Cearense de Quixadá. Adora aparecer por aqui, já veio umas três vezes. Faz turismo de aventura, sobe esses morros todos do Brasil e do mundo.”