Rugas amadas
Vovó Carol assume idade e rejeita fonte da juventude
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emCarolina, a Carol, pouco passada dos 80 anos, parecia não se intimidar com as modernidades. Tanto é que se fazia presente nas redes sociais e possuía alguns milhares de seguidores, inclusive no exterior. Fluente em francês, italiano, espanhol e inglês, a mulher não se deixava ser tomada por medo, vergonha ou timidez diante de falantes de mandarim ou árabe. Nada como colocar no tradutor, que a comunicação andava que era uma beleza.
Os curtos-circuitos, entretanto, costumavam ocorrer em português mesmo, ainda mais quando trocava mensagens com os netos. Esses imbróglios geralmente eram por causa de uma palavra ou outra que já caíra no esquecimento do povo há tempos, mas que a velha cismava em utilizar. Talvez para exercitar a memória ou, é possível, para causar espanto nos mais jovens.
Aconteceu, certa vez, durante uma conversa virtual entre Carolina e duas netas, a Lúcia e a Helena. Uma das moças residia em João Pessoa, enquanto a outra estava passando uma temporada em Buenos Aires para tentar, por uma vez por todas, aprender o espanhol. O problema é que a garota havia arrumado um namorado brasileiro, que também teria ido para a capital da Argentina com o mesmo propósito. O resultado é que, até onde se sabe, os dois nunca conseguiram largar por completo o portunhol.
Voltando ao tal bate-papo entre a vovó Carol e as meninas, eis que a matriarca resolveu vasculhar o dicionário atrás de uma palavra que até ela desconhecia. E, depois de algumas folheadas, conseguiu encontrar uma que parecia ideal. E, não demorou, tratou logo de usá-la como se fosse tão corriqueira como pedir um pingado no balcão da padaria.
— Sabe, crianças, ontem conheci o vizinho que se mudou recentemente. Ele me pareceu ser um abnóxio.
— O que é isso, vovó? A senhora vive falando que não gosta de falar palavrão.
— É mesmo! Mamãe disse que você até passava pimenta na língua dela toda vez que ela falava um.
— E por acaso falei palavrão?
— Ah, você xingou o homem aí de abi não sei o quê.
— Abnóxio, Lúcia!
— Então, isso aí mesmo. Tenho certeza de que esse troço aí é palavrão.
— Abnóxio quer dizer inócuo.
— Vovó! O que é isso? A senhora está com a boca suja hoje, hein!
— Helena, inócuo é o mesmo que inofensivo.
Após a explicação, as três caíram na gargalhada. No entanto, a Lúcia, talvez querendo fazer um agrado, tocou em um ponto nevrálgico da avó.
— Vovó, a senhora é tão moderna. Por que não pinta os cabelos e as unhas. Aliás, deveria até fazer uma plástica que nem a tia Márcia.
— O quê? Você está querendo dizer que estou feia de cabelos brancos, sem pintar as unhas e ainda quer que roubem as minhas rugas de estimação?
— Vovó, a Lúcia só quis dizer que a senhora poderia ficar mais jovem.
— Pois vou lhes dizer uma coisa, meninas. Estou muito bem com meus cabelos brancos, minhas unhas curtinhas e sem pintura. Quanto às minhas ruguinhas, não vou deixar nenhum cirurgião arrancar de mim o que a vida levou tanto tempo para desenhar.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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