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Sina de família

Salomé sobrevive bem em meio a mortes repentinas

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Minha bisavó, Maria de Fátima, a Fatinha, se casou aos 15 anos com um homem escolhido pelo meu trisavô. Sei que, no dia do casamento, minha bisavó se trancou no quarto e chorou o dia inteiro, até que, no dia seguinte, cheia de fome, sentiu o cheiro do pão saindo do forno a lenha.

Se o meu bisavô, Seixas, era um bom homem, não se sabe ao certo. Ele adoeceu dois meses após o casamento. Acamado, sofreu horrores, vomitou os bofes e mais o que nem tinha. Alguém se lembrou de chamar o padre e, no dia seguinte, foi enterrado sem demora. A despeito da partida inesperada do marido, a viúva carregava no ventre o fruto das indesejadas investidas nas noites de alcova.

Pouco tempo antes do esperado, vovó foi arrancada a fórceps das entranhas da mãe, que parecia não desejar que o fruto de tanto desamor viesse ao mundo. Pois veio e, apesar das agruras anteriores ao parto, algo despertou naquela adolescente, que, a partir daquele ponto, se sentiu na obrigação de dar algo além do que o leite que começou a jorrar das tetas túrgidas.

Sem tempo para esperar que o vangloriado amor materno surgisse, Fatinha, determinada, apesar de tanta insegurança que a cercava, fez uma promessa que, até aquele momento, ela desconhecia poder cumprir. Seja como for, olhou para a filha e disse que, a partir de então, as duas teriam um acordo. Ela iria proteger aquele ser a todo custo, enquanto vovó precisaria guardar para si todas as perguntas sobre o falecido pai.

O choro veio como se fosse prelúdio de desavença. Que nada! Era o desconforto próprio de quem, a partir daquele momento, precisaria respirar o ar dos impuros. Fatinha, que não poderia resolver tamanha penúria, tratou logo de apaziguar a situação oferecendo o peito. Foi o suficiente, naquele momento, para acalmar o ímpeto de vovó, que, até o mês que se seguiu, só era chamada de bebê.

Sem tempo para pensar num nome para a criança, Fatinha se viu pressionada pela família do finado. Ela precisaria escolher um, e que fosse Beatriz ou Solange, duas antepassadas de boa fama entre a parentada do Seixas. Minha bisavó, num ímpeto de rebeldia, não queria saber daquela conversa. Até gostava de Beatriz, além de não ter qualquer empecilho relacionado a Solange. Todavia, decidiu que vovó se chamaria Salomé. E Salomé ficou, apesar do alvoroço que provocou na sogra e nas cunhadas.

Fatinha não teve vida fácil. No entanto, nada longe do que já estava acostumada desde sempre. Se comeu o pão que o Diabo amassou, não reclamava. Era sorte ter algum pão para saciar a fome que sempre a rondou. Quanto à minha avó, cresceu com as migalhes que lhe sobravam.

Se Fatinha jamais pôde se sentar à mesa dos abastados, a filha teve melhor sorte ao optar por se sentar no colo dos figurões. E foi assim que acabou engravidando de um cliente, cuja dúvida da paternidade era mais que óbvia. Jamais exigiu nada além do que lhe foi ofertado. Criou a filha, no caso mamãe, com alguns dos mimos que os irmãos honestamente registrados tiveram. Também estudou em escolas de renome, o que, no final das contas, acabou por abrir certas portas até então proibidas para seus antepassados.

Formou-se em administração e, não tardou, conseguiu um excelente posto na empresa do meu suposto avô. Histórias sobre o caso já não são tão corriqueiras, mas mamãe as sabe todas de tanto escutá-las por detrás das portas. Fingiu-se de surda e muda para não revidar tais fofocas, mesmo porque aprendeu desde cedo que não dá para se opor à locomotiva da hipocrisia.

Não sei se mamãe se casou por amor, mas estou certa de que não foi por imposição. Talvez tenha sido por conveniência. Afinal, papai, apesar da aparência pouco atrativa, conseguiu conquistar minha mãe, que sempre me disse que ele era excelente sujeito, além de possuir um patrimônio razoável. Infelizmente, ele começou a passar mal logo após os primeiros enjoos que ela sentiu. É uma pena, meu pai, inesperadamente, faleceu antes mesmo de eu nascer. Foi um tremendo baque na família, que sempre o viu como pleno de saúde. Uns falam que é destino, prefiro chamar de sina.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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