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Omelete no buzão

Voltar no tempo é lembrar que eu era feliz e sabia

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo* - Foto de Arquivo

Se pudesse, voltaria no tempo só para fugir da demência política em que nos meteram. Aproveitaria para checar, rechecar, prechecar e refazer um monte de coisas que fiz e fazer outras que não fiz. Como amostragem, tentei, mas não consegui aparar o bigode da mulher barbada. Cavuquei no vespeiro, mas deixei escapar o precioso favo de mel da abelha rainha. Trabalhei em um circo instalado na principal praça do meu bairro apenas para descobrir a marca da graxa usada pela acrobata em sua sensual dobradiça. É claro que fui demitido na primeira tentativa. Uma de minhas maiores agruras de adolescente foi buscar argumentos para explicar à dona Guigui o zero que havia tomado em uma prova final de Geografia.

Passadas algumas décadas, hoje percebo o absurdo que foi confundir o habitat de Zumbi dos Palmares com o traseiro da mulher do vizinho de frente. Perdi o ano somente porque disse ao teatcher que a portentosa senhora me fazia lembrar dia e noite de Zumbi: Quilombo! O castigo quase chegou em forma de vasectomia forçada. Adentrei o buzão e, pronto para me sentar no banco imediatamente atrás do motorista, ouço a vizinha de assento me alertar: “Cuidado com os ovos”. Ao perceber uma caixinha bem no centro do banco, indaguei inocentemente se eram ovos dos brancos ou dos vermelhos. Séria, a velha retrucou: “São pregos”. Ufa! Foi por pouco.

Evitei a omelete no coletivo, mas a gargalhada coletiva ainda vai me constranger por algumas encarnações. Proprietário de dois cursos superiores, hoje entendo a razão pela qual avô Aristarco Pederneira de Araújo sempre dizia que a vida era a melhor escola para o ser humano. Pura verdade. Afinal, fora as teorias de almanaques, nossos pais tinham pouco ou nenhum conhecimento para nos transformar em homens e mulheres empoderados, conforme o linguajar atual. Os que não conseguiram fugir dos cursos profissionalizantes do Senai ou do Senac são vereadores, deputados, senadores e até presidentes da República.

Graças a Deus, me livrei desses malditos títulos. Enfim, sou de um período em que achavam feio um monte de coisas que hoje é bonito. Por exemplo, abrasar a mufa (fumar) era coisa de macho alfa. Feio era queimar a rosca, sinônimo, à época, de bandalheira, degeneração e devassidão. Sem qualquer conotação homofóbica, hoje multam quem fuma em locais públicos, mas toleram passivamente quem dá ré no quibe no teatro, na praia ou na varanda de casa. Nada contra, pois, como democrata anárquico, entendo que todas as formas de amar valem a pena. Mais do que isso: quem dá o que é seu não merece ser desprezado. O que quero dizer é que eu e os do meu tempo éramos felizes e sabíamos.

Sem esnobar ou menosprezar as modernidades inalcançáveis para os mais velhos, como é bom lembrar do tempo em que as expressões toco cru pegando fogo e água morro abaixo, fogo morro acima, mulher quando quer ninguém segura eram somente figuras de linguagem. Também nunca vi má fé ou duplo sentido quando ouvia o colega de classe Seventeen informar que os homens de Ponta Grossa namoravam, mas jamais se casavam com as moças de Curralinho. Ignorância de um povo que parece ignorar que o passado tem importância até em nossos liberados dias. Antes que perguntem, Seventeen era paranaense, boa pinta e daqueles que as meninas avaliavam como fogo na roupa.

Ele passou a ser conhecido pelo pomposo apelido porque em um dos pés lhe faltavam três dedos. Os 17 restantes foram suficientes para inglesar o ilustre representante ponta-grossense. Por oportuno, devo esclarecer que nunca chequei a ponta do parceiro. Me limitei a alfinetar a cidade no mapa do Paraná. Falar em fogo na roupa é lembrar de algumas das principais gírias dos anos de ouro. Em momento algum fui um broto ou um pão. Apesar do cabelo com o pega rapaz (a vírgula na testa), tampouco me rotulavam de lelé da cuca. Pelo contrário. Tinha fama de batuta e da fuzarca. Grilado, sem beca, com pouco tutu e sem caranga, não podia marcar touca. Por isso, usava o borogodó para mostrar às minas que não era borocoxô. Não posso, mas se pudesse voltar no tempo diria aos mais novos que quem segura, amarra e sangra o porco jamais precisará dizer que é imbrochável.

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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