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Conquistador arrependido

Deoclécio, agora viúvo, faz real ‘a vida como ela é’

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Escrever contos e crônicas para os leitores de Notibras me faz prestar atenção em muitas conversas, guardar histórias e estimular relatos de meus interlocutores, em busca de ideias e inspirações. Ainda outro dia comentava com o meu amigo Eduardo Martínez, escritor de Notibras, que adquirira, na minha mais recente passagem pela cidade mineira de Juiz de Fora, um livro com todos (ou quase todos) os contos publicados pelo grande Nelson Rodrigues, que como poucos escritores soube captar tão bem a vida e o drama dos cariocas.

Grande fonte de inspiração, sem dúvida. E, por coincidência, pouco tempo depois, quando conversava com dois colegas de trabalho, fiquei sabendo dessa história quase real, na qual reconheci fortes traços de um conto rodrigueano, ocorrida na família de um deles, no Rio de Janeiro dos anos de 1960, que passo a relatar agora, sob autorização de quem me contou, mas com nomes fictícios, com a plena certeza de que a vida imita a arte.

Deoclécio e Arminda conheceram-se ainda na adolescência e cresceram na mesma rua. Ele, galã, com fama de inconstante e conquistador. Não se apaixonava por mais do que quatro ou seis semanas e, depois, procurava outro amor. Arminda, desde que entendera o que era amor, quisera Deoclécio para sempre. As famílias de ambos eram muito amigas e, estando os jovens para entrar na vida adulta, comentaram seus pais entre si que dariam um bom casamento.

Para Arminda, foi uma ideia de ouro. Para Deoclécio, houve preocupação inicial. Não se imaginava casado, nem preso para sempre a uma mulher só, mas a segunda parte do plano interessou-lhe: seria gerente na empresa de ônibus comandada pelo futuro sogro, salário garantido. Ganhariam ainda uma boa casa já no início da vida a dois, o que geraria a economia de uns bons contos. Assim, o rapaz embarcou na ideia sem maiores dificuldades.

Deoclécio não via grande graça em Arminda, embora não a achasse feia. No geral, era uma boa alma e nada tinha contra ela. Só teria de se acostumar à ideia de ter uma mulher apenas, que o acompanharia até que a morte os separasse. Mas, casados, não tardou que sua natureza se manifestasse plena, irrefreável. E, por conta de suas conquistas, passava invariavelmente duas ou três noites fora do lar, sabe-se lá onde.

Arminda sofreu, em princípio, com aquelas ausências arrematadas pelo retorno do maridinho com mancha de batom na camisa e cheiro de perfume barato. Protestava dramaticamente mas, depois, conformou-se com a natureza errante do marido, do qual já conhecia a fama desde o final da adolescência, prevenida que fora por sua madrinha, dona Conceição, uma sábia mulher:

– Homem não muda não, minha filha. Só aprimora os defeitos com o tempo. Depois você não reclama.

Até que, um dia, reencontrou Carlos. Parente distante, nem se sabia direito em que grau, viera do interior para a capital por conta do trabalho e, num aniversário qualquer em família, Arminda ficou olhando para o moço, lembrando-se que, um dia passara por sua cabeça que poderiam formar um casal, ideia inocente, logo esquecida, que não gerara maiores consequências.

Mas Carlos era só sorriso e atenção para Arminda. Ficara solteiro, dedicado completamente à carreira militar. Os charmes do parente despertaram um não sei o quê em Arminda e, em poucos dias, ela esquecera dos votos matrimoniais e do temor que tinha em desagradar Deoclécio. Tornaram-se amantes, que passavam tórridas tardes enquanto Deoclécio suava a camisa na empresa do sogro para, à noite, sujá-la no batom das amantes.

Mas, se Deoclécio era um canalha e não se importava com a discrição em suas relações extraconjugais, Arminda era uma dama acima de qualquer suspeita. Nunca dera razão para quaisquer desconfianças por parte do esposo, tampouco dos outros familiares. Somente dona Conceição, que tudo percebia, alertava a moça:

– Veja lá, minha filha. Retribuindo o chifre? Qual… Um dia um dos dois sairá magoado.

– Não me importo, dinda – respondia Arminda. Ele é um descarado. Apesar disso, não o quero mal. Mas eu pago, pago sim, na mesma moeda. Cada centavo…

Dois ou três anos se passaram e Deoclécio não desconfiava da esposa. Mas continuava a ter seus casos.

Um dia, sem que ninguém esperasse, uma ave agourenta pousou na janela do casal. Dona Conceição, de visita, enquanto sorvia um gole de chá teve um arrepio, um tremelique, deixou a xícara de porcelana cair no chão encerado, fazendo um ruído de cacos estraçalhados. O chá, caindo, manchou-lhe o vestido.

– Minha filha, muda esse teu proceder. A paga do pecado é a morte.

A afilhada deu de ombros. Mas, ao cabo de poucas semanas, Arminda encontrava-se sentada à mesinha de costura quando, sem um ai, estacou de repente e fechou os olhos lindos, exalando um último suspiro. Foi uma comoção. A empregada saiu a gritar pela rua, chamando socorro, acudam, mas não deu tempo de nada. Estava morta a mulher, antes dos trinta anos, de um derrame repentino.

Quem pensaria que Deoclécio se abalou? Virou foi um viuvão escancarado, cheio de dentes para as moçoilas que passou a trocar com uma voracidade impressionante. Às escâncaras, levava as conquistas para a sua casa e, não raro, escandalizava o bairro saindo a passear com elas para os sambas das redondezas. Agora não precisava mais esconder-se da esposa, dos sogros, dos parentes. Sempre dentro de um alinhado terno claro, jamais enlutara-se.

Sem riscos, sua vida resumia-se entre conquistas amorosas e o trabalho na empresa do pai da falecida, onde continuava com afinco, ganhando confiança e poder.

Até que, um dia, desolado por uma de suas namoradinhas haver lhe trocado por um noivo certo, desolação que duraria poucas horas, resolveu descansar um pouco e ir esvaziar umas garrafas num dos botequins das redondezas.

Lá, numa mesa, magro, abatido, barba por fazer, camisa amarrotada, estava Carlos, o primo distante e amante da morta. Deoclécio, que jamais desconfiara do relacionamento entre os dois, mal reconheceu o militar, tamanho o desalinho dos trajes e o sofrimento da fisionomia. Acercou-se dele, que estava sozinho numa mesa com uma dúzia de garrafas de cerveja vazias em cima. Sorvera todas. Puxou assunto:

– Como é, amizade, não cumprimenta mais os parentes?

Deoclécio ficou sem reação com a atitude daquele esquálido homem. Num gesto rápido, levantou-se e laçou os braços em volta do pescoço do bilontra como num abraço de afogado. E soluçava a ponto dos circundantes ficarem tocados com a patética cena, entremeada de súplica:

– Perdoa-me, Deoclécio, perdoa-me. Ela era tua, mas quem a amava era eu… Era eu…

E, num pranto louco, Carlos foi deslizando pelo tronco de Deoclécio até cair em frente a ele de joelhos, com ar constrito e desesperado.

Bastaram dez minutos de conversa entre os dois, após o interlocutor do viúvo se recompor um pouco, para Deoclécio entender tudo. Afinal, fora traído. Traído pela mulher que ele traía.

Pois o viúvo, em vez de rir-se com a descoberta e vencer qualquer sombra remota de remorso, teve um comportamento exatamente oposto. Arrependeu-se de seus deslizes e sentiu haver entre ele e a esposa extinta uma ligação inquebrantável, uma compreensão mútua que tomou conta de todo o seu ser.

Jamais arrependeu-se de seu comportamento infiel, mas, dali em diante, assumiu o papel de viúvo triste, inconsolável. Vestiu um luto pesado, demitiu-se do emprego, recusou qualquer contato com as amantes que chegavam a bater em sua porta aos pares, aos trios, e passou seus últimos dias de vida em casa, trancado, sem falar com ninguém, agarrado a um porta-retratos com a fotografia de Arminda, ricamente vestida e enchapelada, tirada no dia em que os dois saíram em viagem de núpcias.

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