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Em algum lugar no futuro há o passado aventureiro de Odisseus

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Autor/Imagem:
Cleber Pacheco - Foto Produção Irene Araújo

Entre os escombros encontro os degraus da casa. Subo em busca de um esconderijo. Aqui fico enquanto possível for. Até que necessário seja buscar outro. Eis minha errática vida. Um canto para dormir, alguma comida. Água, talvez. O maior luxo que poderei encontrar nestes tempos de total destruição.

São três andares conectados por escadas. Ou o que restou delas. Examino as possibilidades. Aproximando-me, observo detalhes. A ala norte não existe mais. Percebo a existência de quartos intactos. Uma hora depois, revela-se um verdadeiro tesouro: um compartimento no soalho contendo comida processada.

Tenho sorte. Inúmeras pessoas estão em desespero tentando encontrar algum tipo de alimento. Subo até o terceiro andar, o mais instável, e descubro algo totalmente inesperado: uma sala contendo livros. Alguns deles estragados. Hoje em dia quase ninguém mais se interessa por esse tipo de coisa.

Chamo o local de biblioteca. É o espaço ideal para mim, pois contém uma lareira e o mundo se tornou um lugar frio. Escolho alguns livros para acender o fogo. Na capa de um deles está escrito:

OBRAS DE WILLIAM SHAKESPEARE
HAMLET- MACBETH- KING LEAR

Não tenho noção do que se trata. Em nossa era, aprendemos a ler apenas tratados técnicos. Constato que o volume é grosso. Crepitam as chamas rapidamente. Comer, dormir e vigiar. Nossas únicas atividades agora. A única distração é o acaso de termos algum sonho. Na maioria das vezes, porém, afloram pesadelos. Acordo aos gritos.

Entediado e só, à medida que os dias passam, decido espiar o conteúdo dos volumes da biblioteca. Encontro imagens interessantes: pinturas, ilustrações, desenhos. Arranco as minhas favoritas, quero levá-las comigo quando partir novamente. Serão as únicas imagens de beleza disponíveis. Esteja onde estiver.

Passados três dias, encontro numa das prateleiras um livro em que está escrita a palavra ODISSEIA. Tentando encontrar uma gravura, descubro: um tal de Homero escreveu aquilo. Parece tratar-se de texto bastante antigo. Percebo ser a história de alguém chamado Ulisses e que ele deseja voltar para casa após uma terrível guerra. Talvez isso tenha despertado o meu interesse.

Somos sobreviventes. Com uma diferença: não tenho para onde ir. Ou melhor, duas: não há Penélope a me esperar. Talvez simplesmente tenha me encantado pela ninfa Calipso. Não tenho certeza. Junto com meus outros escassos pertences e o restante da comida, coloco a Odisseia. Vou levá-la comigo.

É hora de seguir em frente. Retomo o desolado caminho rabiscado no incerto. É preciso tomar muito cuidado. Há perigos por toda parte. Alguns dias mais tarde, avisto um grupo sentado em volta de uma fogueira. Arrisco uma aproximação, mesmo percebendo olhares de suspeita. Chego, apresento-me, abro o livro e começo a ler a história de Odisseus.

Naquela mesma noite tenho uma revelação: acabo de criar uma legião que me seguirá por toda parte nesta era de ruína e trevas.

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