Entrevista/Vicente de Melo
‘Escrever é como criar cenários guardados na profundidade da mente’
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emMal deixou de engatinhar, ganhou o mundo pelas mãos dos pais. É Vicente de Melo, que trocou o cheiro das matas, o sabor do leite fresco e o mugir de boiadas pela selva de pedra de Brasília. Veio da mineiríssima Uberaba para a capital da República, onde transformou-se em um cidadão respeitado, de caráter firme e sorriso suave.
‘Candango nato’, conforme sua própria definição, Vicente é uma agradável surpresa no campo das letras. Tanto, que sua primeira obra literária foi premiada pelo Sesc. Ele comemora nesta entrevista a iniciativa de Notibras de abrir um espaço para contistas, cronistas, poetas e romancistas.
Leia trechos a seguir:
Fale um pouco sobre você, seu nome (se quiser, pode falar apenas o artístico), onde nasceu, onde mora, sobre sua trajetória como escritor.
Eu me chamo Vicente de Melo. Nasci em Uberaba-MG, mas cheguei cedo em Brasília, aos 2 anos de idade. Portanto, me considero um candango nato. Moro na cidade-satélite de Ceilândia, bem ao lado da Casa do Cantador, obra de Oscar Niemeyer criada para homenagear os candangos construtores de Brasília. Sempre gostei de escrever, mas guardava meus escritos nas gavetas. Porém, minha trajetória como escritor começou a partir do dia em que escrevi meu primeiro conto chamado “Os estultos”, enviei sem muita pretensão para o “Prêmio SESC de Contos Machado de Assis”, edição 2005, e, para minha surpresa, fui vencedor do concurso. A partir daí, não parei mais. Tenho cinco livros publicados, sendo quatro coletâneas de contos e um romance. O romance “A saga de um candango”, obra selecionada entre os escritores do DF, lançado na II Bienal do Livro e Leitura de Brasília, em abril de 2014. Em 2023, no meu primeiro contrato oficial, lancei a coletânea “Contos de mendigos, putas e outros párias”, pela Editora Folheando. Além disso, tenho ainda inúmeros contos avulsos publicados em revistas e coletâneas de livros, todos frutos de participação em concursos literários.
Como a escrita surgiu na sua vida?
Com certeza através da leitura, muita leitura. Eu costumo repetir sempre que a necessidade de ler me levou à magia de escrever. Sim, ler, para mim, não é apenas um mero passatempo, mas também uma necessidade. Quanto a escrever, trata-se simplesmente de uma grande viagem passando por diversos cenários da vida.
De onde vem a inspiração para a construção dos seus textos?
A maioria dos meus contos são inspirados na realidade social transformada em ficção. São contos considerados marginais, quase sempre denunciando as dicotomias do luxo e do lixo, da riqueza e da miséria, da fome e da fartura. Contos, na verdade, para ler, pensar e refletir.
Como a sua formação ou sua história de vida interferem no seu processo de escrita?
De quase todas as formas. Na verdade, muitas vezes eu me vejo incorporado em vários personagens, em várias cenas e em vários enredos. Dessa forma, tudo se parece bem mais real.
Quais são os seus livros favoritos?
São tantos, que fica muito difícil falar de apenas um. Porém, não posso deixar de citar as obras de Jorge Amado, principalmente Capitães de Areia, minha primeira leitura de verdade. E, na literatura internacional, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Crime e Castigo, de Dostoievski e Guerra e Paz de Tolstói. Sem falar dos contos de Anton Tchekhov, principalmente o conto “A pamonha”, que me inspirou a escrever “Os estultos”, meu primeiro conto.
Quais são seus autores favoritos?
São vários. Mas como romancistas eu adoro Jorge Amado, Mário Vargas Llosa e Gabriel Garcia Márquez. E, como contistas, sem dúvida alguma, Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna e Anton Tchekhov. Na literatura atual, Carla Madeiro, Milton Hatoum e Leonardo Padura.
O que é mais importante no seu processo de escrita? A inspiração ou a concentração? Precisa esperar pela inspiração chegar ou a escrita é um hábito constante?
Ambas são importantes. Porém, a inspiração é bem mais essencial. Muitas vezes, quando estou muito inspirado, escrevo um conto por dia. Sendo assim, a escrita acaba se tornando um hábito constante.
Qual é o tema mais presente nos seus escritos? E por que você escolheu esse assunto?
Como eu já disse, o tema mais presente nos meus contos é a realidade social. Meus personagens estão muito presentes nas ruas, nas rodoviárias, nos metrôs, nos bares, nas praças, nos mercados, nos hospitais, nos bordeis e em muitos outros lugares. Assim, fica mais fácil, nas minhas andanças, encontrá-los no dia a dia no meio do povo.
Para você, qual é o objetivo da literatura?
Obviamente, além dos momentos de prazer, informar, esclarecer e principalmente transformar a sociedade.
Você está trabalhando em algum projeto neste momento?
Além da divulgação do meu novo livro, eu estou escrevendo. Sim, eu escrevo todos os dias e, quando aparece a oportunidade, envio meus contos para concursos literários de relevância.
Quais livros formaram quem você é hoje? O José Seabra sempre cita Camilo Castelo Branco como seu escritor predileto, o Daniel Marchi tem fascinação pelo Augusto Frederico Schmidt, e o Eduardo Martínez aponta Machado de Assis como a sua maior referência literária. Você também deve ter as suas preferências. Quem são? E há algum ou alguns escritores e poetas contemporâneos que você queira citar?
O romance “Capitães de Areia” foi a minha primeira leitura, me levando a aprender a gostar de ler. Sendo assim, Jorge Amado passou a ser uma referência para mim. Agora, no âmbito do conto, sem dúvida alguma, minha referência literária foi Anton Tchekhov, que me inspirou a escrever meu primeiro conto. Atualmente, além de muitos outros, eu destaco a literatura de Milton Hatoum, Carla Madeiro e Marcelino Freire.
Como é ser escritor hoje em dia?
Para mim, é escrever para não enlouquecer, como dizia Bukowski. Além de lutar para incentivar a leitura e, principalmente, para não deixar morrer a literatura no mundo alienado da tecnologia moderna.
Qual a sua avaliação sobre o Café Literário, a nova editoria do Notibras?
Nota mil. Trata-se de uma iniciativa maravilhosa, principalmente para divulgar os autores novatos, sem mídia e desconhecidos do público. Parabéns a todos pelo projeto.
Tem alguma coisa que eu não perguntei e você gostaria de falar?
Não. Gostaria somente de agradecer a vocês pela oportunidade. Obrigado por tudo.