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Voto envergonhado

No país dividido, a sacanagem é o que ainda pode unir os brasileiros

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo* - Foto de Arquivo

Em um país tão dividido social, política e economicamente como o Brasil, o que pode nos unir? Bastam dois segundos de reflexão para se concluir que, caso haja alguma forma de união, ela é a sacanagem. Substantivo feminino e com o mesmo significado de safadeza ou fuleragem, a sacanagem é capaz de se expressar por meio de outros sinônimos e de variadas maneiras, entre elas o modo de agir de uma pessoa sacana, brincalhona ou sem caráter. No sentido familiar, é apenas uma gozação. O termo degenera para uma devassidão prazerosa e ejaculatória no caso de uma ação libidinosa que transgrida as normas sexuais consideradas comuns.

No linguajar de botequim já fechado, é sentir sozinho arrepios que não são de medo nem de frio. É a cabeça proibir, o corpo desobedecer e nada acontecer. Ou – o que é pior -, uma cabeça não pensar, a outra agir e o bolso esvaziar. Talvez uma das mais marcantes seja, de madrugada, a gente sair acompanhado da balada com uma loira estonteante, do tipo Farrah Fawcett, e, antes mesmo da alcova, ainda no primeiro toque mais íntimo, descobrir que a quase Brigite Bardot era na verdade Robert de Niro disfarçado daquele ator metade cearense e metade gaúcho, o Licarco Ferro de costas.

Sacanagem é ser obrigado a responder ao pneumologista que já tive os vícios do tabaco e da pororoca. Atualmente estou limitado ao cheiro do fumo e ao frescor do corregozinho da casa da vizinha. Quanto ao fumo, esclareço que obviamente não é o de rolo. Ainda me apetece apenas o de trança. Galhofa maior é usar fraldão e dizer aos amigos que voltei a ser criança. Por recomendação médica, tenho o máximo cuidado com a língua portuguesa. A das portuguesas faz tempo não bolino mais. Meu medo é que confundam o repositório digital de minhas narrativas com o supositório do código-fonte dos meus anais.

Zombaria mesmo é lembrar do gigante pela própria natureza, outrora mais fúlgido e brilhante a todo instante. Heroico, mas sem o brado retumbante, hoje, adormecido em margens plácidas de um riachinho que o lábaro ainda ostenta, ele quase não tem mais o verde louro da flâmula. Também perdeu as flores do bosque e esqueceu o seio dos muitos amores. Vejam o que tempo fez comigo. As glórias do passado lembram o Cruzeiro de Tostão, o Vasco de Roberto Dinamite e o Flamengo de Zico. Era sempre bola no filó. O sono em berço esplêndido virou fato e não fake.

Sem sacanagem, a maior das sacanagens foi o ano de 2024, ápice da desunião. Ele só não foi pior do que 2023, quando tentaram repetir na Praça dos Três Poderes a Tomada da Bastilha de 1789. Em 2024, além da batalha a céu aberto em que se transformaram os debates políticos e, por extensão, a política nacional, o amor deixou de ser aquilo que me fazia sentir um calor tão intenso que, por pouco, metaforicamente eu não ardia em chamas. Nos dias de hoje, o nome disso é Brasília, Cuiabá, São Paulo e Pantanal. Na outra ponta, as fortes chuvas voltam a sacanear o patriotismo exagerado dos gaúchos.

Entendo todo tipo de sacanagem. A única que ainda não entendi tem a ver com as eleições. Depois de anos de luta para conquistar o direito de votar soberana e livremente, percebo que os eleitores de hoje se dirigem às sessões eleitorais como se estivessem indo a um velório. Será o tal voto envergonhado? Parece que sim. Afinal, quem em sã consciência tem coragem de assumir voto em Pablo Marçal, em Alexandre Ramagem, Capitão fulano, Coronel beltrano, General ciclano ou Doutor não sei das quantas. Se a ideia é convencer, estimular ou ameaçar pelos títulos, o tiro saiu pela culatra. Acabou o medo. É claro que muitos votarão neles, mas morrerão negando. Alguns talvez morram de vergonha antes mesmo de partir.

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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