A hora do pão de queijo
Esperança que não morre acende desejo do beijo
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emTodos, ainda me lembro, acertavam os relógios assim que o delicioso cheiro do pão de queijo da dona Adélia tomava a rua. Quatro horas da tarde! E ninguém se atrevia a questionar tamanha precisão. Até o padre Horácio sabia que aquela hora era sagrada. Tanto é que, como de costume, ia ter com a senhora um tanto de minutos antes.
O sacerdote nem chegava a bater à porta da antiga casa da esquina, pois o arrastar daquelas sandálias sob a batina o anunciava. Um sorriso o recebia assim que ele subia o último vão da pequena escada.
— Que bom que o senhor chegou a tempo de provar o pão de queijo que acabei de retirar do forno.
Se era verdade ou não, sei lá, mas corria à boca pequena que aqueles dois possuíam algo além do apreço pelo pão de queijo. Não que fosse algo falado logo ali na pequena praça defronte à igreja. Era mais uma coisa de olhares e sorrisos maliciosos do povo, que não tinha coisa melhor para fazer ou, então, fruto da natureza tão própria dos humanos.
Padre Horácio, assim que a porta lhe era aberta, estendia o braço para dona Adélia, que lhe pousava os lábios sobre aquela mão quase tão alva como farinha de trigo. Isso acontecia tanto ao entrar como ao se despedir. E, quando estava de volta à calçada, o religioso pegava um pente de chifre de boi e o deslizava sobre os cabelos quase negros, se não fosse por duas mechas brancas próximas às orelhas. Aquilo, aliás, era mais um mote para o falatório maldoso.
Enquanto menino, não atentava para tais conversas. Pensava apenas naquele pão de queijo, cujo cheiro inebriava minhas narinas infantis. Na verdade, apenas quando me tornei homem feito é que tive o prazer de degustar um ou dois. Confesso que não o achei nem melhor nem pior do que os demais que já havia comido. Seja como for, é uma parte da minha infância que gosto de lembrar, ainda mais porque era justamente quando a meninada começava a sair para se divertir na rua.
Adorava brincar de queimada, principalmente quando não ficava no time da Fernanda, uma garota bem magrinha, cujos olhos me causavam arrepios. E, todas as vezes que ela arremessava a bola, eu me deixava ser queimado apenas para olhá-la soltando aquela gargalhada tão gostosa.
— Te queimei de novo, Carlinhos!
E lá ia eu para o outro lado. Fingia-me emburrado, enquanto sentia meu coração palpitar dentro do peito. Coisas de menino, cuja voz começava a engrossar. Todavia, jamais consegui fazer com que a Fernanda me fitasse de maneira especial. Isso, aliás, ela fazia, ainda que discretamente, para o Toninho, que morava justamente na casa ao lado da minha.
Cheguei a ter ódio daquele garoto. Um intrometido, que impediu que eu desfrutasse o primeiro amor da minha vida. Por ironia, viramos melhores amigos dois anos após. E, confesso, foi eu que me aproximei por ciúme e despeito, pois ele e Fernanda se tornaram namorados. Tal comportamento doentio ou, ao menos, contraditório, também fez com que a menina dos meus sonhos se tornasse minha grande confidente.
— Você gosta de alguém, Carlinhos?
— Sim.
— E eu posso saber quem é?
— É segredo.
— Hum. Você está me deixando curiosa. Eu conheço essa sortuda?
Eu não sabia onde enfiar a minha cara, ainda mais diante daqueles olhos tão inquisidores, daqueles lábios maravilhosamente delineados. Menti descaradamente.
— Não conhece. É uma menina que conheci numa festa. A gente ficou, mas ela preferiu terminar.
— Por quê?
— Ah, ela me disse que estava gostando de outro cara.
— Qual o nome dela?
— Por que quer saber?
— Porque sou curiosa e também sou sua melhor amiga.
— Mara.
— Mara? Eu conheço uma Mara. Como ela é?
— Magra, um pouco alta.
— Da minha altura?
— Por aí.
— Qual a cor dos cabelos dela?
— Ruiva.
— Ruiva? Não é possível!
— Por quê?
— Não é possível que existam duas Maras, magras, altas e ruivas. Eu conheço essa sua namorada!
Fiquei estático. Não sabia o que falar. Tentei convencê-la de que era óbvio que existiam duas Maras, magras, altas e ruivas. Falei até que era bem provável que existissem dezenas de garotas assim. Que nada! Como fui burro em inventar que namorava uma Mara, magra, alta e ruiva.
Lembro-me de que, na noite daquele dia, levei muito tempo para pegar no sono. Morria de medo de ser pego naquela mentira tão deslavada. E, pior, justamente pela Fernanda, a garota mais linda da minha rua. E se aquela história se espalhasse? Os supostos comentários me perseguiram por dias: “Você viu o Carlinhos? Pois é, tá inventando que ficou com a Mara, aquela ruiva amiga da Nanda!”, “Ah, o Carlinhos nunca nem beijou uma garota!”, “O Carlinhos mente que nem sente!”
Não sei se a Fernanda se esqueceu da nossa conversa ou, então, preferiu não tocar mais no assunto. Por conta disso, meu medo foi se esvaindo, até que, por fim, nem eu me lembrava. Isso até a semana passada, quando, após quase 20 anos, esbarrei com o amor da minha infância na entrada do cinema. A princípio, não me dei conta da sua presença, até que ela tocou meu ombro.
— Carlinhos! Não é possível! Há quanto tempo!
— Nanda!
A minha antiga confidente me deu um abraço apertado e nos beijamos no rosto. Naquele instante, muitas coisas passaram pela minha mente. O que ela fazia da vida? Morava perto? Será que ela estava solteira? Tais pensamentos, todavia, viraram fumaça assim que ela chamou uma amiga, que carregava um enorme saco de pipoca e dois copos de refrigerante.
— Lembra da Mara?
Apenas sorri. Finalmente, depois de tantos anos, fui conhecer o meu antigo caso que nunca existiu. Mara, magra, alta e ruiva. Aliás, como era linda!
Apesar do cinema praticamente lotado, conseguimos sentar juntos. Não por sorte, mas porque a Nanda convenceu um rapaz a trocar de lugar comigo. Fiquei entre aquelas duas mulheres maravilhosas por quase três horas de filme. Depois, convidei as duas para irmos a uma cafeteria ali perto. Por sorte, elas aceitaram.
Sentamos à mesa mais ao canto e fizemos nossos pedidos, praticamente idênticos, caso não fosse pelo cappuccino da Fernanda. Para acompanhar, pedimos pão de queijo.
— Carlinhos, você se lembra da dona Adélia e do padre Horácio?
— Aqueles pães de queijo fizeram história.
Entre lembranças e risadas, aqueles momentos foram os melhores da minha vida, que, na verdade, havia se tornado muito chata. É que me tornei gerente de um banco, mal saía com mulheres. Não por culpa delas, é que eu me transformara num homem desinteressante. Isto é, até que, após oferecer carona para Fernanda e Mara, agarrei-me à minha derradeira esperança. Como a Fernanda morava mais perto, a deixei primeiro em casa. Em seguida, quando voltei ao carro, ganhei um beijo inesperado.
— Carlinhos, ouço falar de você há tanto tempo, que é como se já nos conhecêssemos.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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