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O julgamento

Família de juristas julga rato intruso que sai ileso sem provas

Publicado

Autor/Imagem:
Sérgio Bonatto - Texto e foto

Conta-se que, no início do século XVI, os ratos da França, acusados de devastarem a colheita de cevada, foram convocados ao tribunal episcopal a fim de se defenderem. Contudo, mesmo correndo o risco de serem julgados à revelia e ante a ameaça de excomunhão, os ratos faltaram à audiência.

Ainda assim, seu advogado, o jurista Bartolomeu Chassenée, conseguiu fazer com que o julgamento fosse adiado, argumentando que seus clientes precisariam se submeter a notório risco de vida para comparecerem ao tribunal.

Infelizmente não há registros históricos sobre a conclusão desse caso. Mas coube a um descendente dos roedores franceses a oportunidade de obter, em nossos dias, justiça a toda a sua classe. A história se deu da seguinte forma:

Estava toda a família (pai, mãe e os dois filhos) reunida na cozinha, confraternizando após um farto jantar, quando de repente a filha solta um grito:

– Um rato!!!

– Onde? Onde? _ perguntam todos.

– Ali. Passou correndo para trás do fogão, diz ela, enquanto sobe na cadeira e ameaça subir na mesa.

– Você deve estar enganada. Vamos ver… – retruca o irmão, enquanto desce da mesa.

Abre forno, arrasta fogão, bate aqui, bate ali e nada de rato. Deve ter sido impressão sua – diz o pai.

– Aaaiiii!! Ali, ali! _ grita a mãe, em desespero, derrubando a filha da cadeira e ocupando seu lugar.

– Onde? Onde? – perguntam todos, novamente.

– Estava ali, atrás do fogão. Ele saiu e voltou. Vocês estavam de costas, mas tenho certeza de que eu vi.

Logicamente o testemunho da mãe teve um peso bem maior. Pai e filho retornam à caça enquanto a filha ocupa outra cadeira (bem longe da mãe).

Ligam o forno, jogam veneno em aerossol e nada! Finalmente, ao arrastarem o fogão, mais uma vez, o meliante sai em carreira desabalada, rente à parede.

Pega! Corre! Chuta! Num gesto de puro reflexo, o pai dá de mão em seu troféu, uma réplica da Taça Libertadores/2017 e pláá, parte ele ao meio com uma única bordoada (o troféu, não o rato. No desespero, o bandidinho se refugiou dentro da gaiola do hamster, que se encontrava desabitada há tempos).

Com lágrimas nos olhos, ainda se recuperando da perda, o pai foi lá e fechou a portinhola.

E agora? O que fazer? Imediatamente começou a discussão. Tinham certeza de que se fosse na casa de seus vizinhos o prisioneiro seria executado sumariamente (e os outros ratos ainda teriam que arcar com o prejuízo do troféu – diz o pai, consigo mesmo).

Porém, não essa família, composta de pais juízes, filho promotor e a filha caçula, uma jovem e promissora advogada: Somos civilizados! – exclama o pai, abraçado aos restos do troféu.

Após um breve debate, decidiram realizar o julgamento do rato. O pai se declarou impedido, por estar emocionalmente envolvido com o caso, mas se dispôs a exercer todas as outras funções necessárias.

Isto posto, a mãe ocupou o papel de juíza, o filho, logicamente, se prontificou como promotor e a filha assumiu a defesa do rato-réu (que agora se exercitava na gaiola do hamster, alheio a tudo).

Cabe ressaltar que a partir desse momento, por exigência de sua advogada e sob ameaça de processo por danos morais, o acusado passou a ser chamado de roedor, pequeno mamífero ou qualquer outra expressão que não atentasse contra sua imagem ou sentimentos.

Como a prisão tinha se dado em flagrante, o detido foi conduzido à autoridade policial (da qual o pai fez as vezes), que lavrou o auto de prisão em flagrante.

A seguir, foi submetido ao exame de corpo de delito, com o médico (também o pai) e, mesmo ante a dificuldade da obtenção das impressões digitais, foi confirmada a sua identidade: era um rato, digo, um mamífero roedor.

Em sequência, o preso foi atendido por uma equipe multidisciplinar formada por um psicólogo (o pai), um assistente social (novamente o pai) e um técnico de enfermagem (adivinhem…).

Logo então, transcorreu a audiência de custódia, com a participação do preso, da juíza (a mãe), do membro do Ministério Público (o filho) e da advogada de defesa (a filha). Apesar do susto, o Rattus rattus (nome científico, não confundir com o depreciativo “rato”) estava bem, sem nenhuma lesão corporal e tampouco observou-se indícios abuso de autoridade.

Durante a audiência de custódia, o autuado atendeu às orientações de sua defensora e permaneceu em silêncio.

Após ser ouvido o Ministério Público e a advogada de defesa, a magistrada decidiu pela conversão da “prisão em flagrante” em “prisão preventiva”, nos termos do inciso II do artigo 310 do Código de Processo Penal.

E foi marcado o julgamento para o dia seguinte.

Chegado o grande dia, a casa foi tomada de pompa: a família toda “na beca”, literal e figuradamente. O filho ostentava um belíssimo anel de ouro com um rubi vermelho vibrante, símbolo do curso de direito; a filha trazia rente ao peito um broche da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) incrustado de diamantes; a mãe se apresentou com uma peruca branca, ao estilo dos juízes britânicos (um sonho antigo que finalmente poderia realizar) e o pai fez as vezes de meirinho, resgatando uma função extinta, mas firmando seu lugar ao sol, ou seja, no julgamento.

Por fim, a cozinheira, o jardineiro e o motorista formaram o tribunal do júri.

Para dar início ao julgamento a ilustríssima juíza (mãe), ordenou: – Meirinho, faça adentrar o rat… réu. Faça adentrar o réu.

Enquanto isso, a filha que tinha esboçado uma reação, volta a se sentar.

Após as formalidades iniciais, o promotor, fez uma explanação sobre os prejuízos históricos que esses roedores trouxeram à humanidade, destruindo plantações, fazendo suas necessidades fisiológicas nos grãos estocados e, assim, tornando-os impróprios para consumo, além de transmitirem diversas doenças aos homens e aos animais.

E continuou:

– Ele invadiu nossa casa!

– Objeção, excelência! – retrucou a advogada. Se o promotor lavasse a louça que usa, o rato não teria entrado…

– O que Vossa Excelência disse?! – questionou a juíza, com um misto de acusação e triunfo no olhar.

– …

– A senhora advogada disse “o rato”.
_ Não, excelência! Honrado, eu disse honrado.

– É um absurdo! _ reclamou o promotor. Ela não estende a própria cama e quer falar da minha louça?!

– A senhora disse “o rato”. Eu tenho certeza. _ insistiu a juíza, olhando em volta buscando alguém que confirmasse.

Nesse momento, o promotor pediu ao pai (que agora exercia a função de taquígrafo), a transcrição da fala da advogada. Entretanto, este não pôde lhe atender porque ainda estava tentando digitar “objeção”.
Tudo descambou para um enorme tumulto entre promotor, juíza e advogada e o julgamento precisou ser interrompido por meia hora.

Todos recompostos, a palavra foi dada à advogada de defesa. Determinada a vencer seu irmão, debatedor de infância e digno promotor de justiça, a defensora expôs a dívida histórica que a humanidade possuía com os ratos, os quais foram injustamente acusados de propagarem a peste negra, precisaram viver à margem da sociedade durante tanto tempo, sendo discriminados diariamente pela elite capitalista, burguesa e opressora, simplesmente pelo fato de serem ratos.

– Agora sim! – berrou a magistrada -mVocê disse “rato”. Amor, digo, meirinho, digo, o que você é gora? Você a ouviu dizer, não ouviu?

– Ah! Me processa! _ reclamou a filha.

– Hipócrita! _ bradou o irmão para a irmã _ você comeu a minha sobremesa e quer falar de justiça?!

A irmã joga um exemplar da Constituição Federal no rosto do irmão, que revida com o vade-mécum. A irmã se esquiva e o livro acerta a cabeça da cozinheira, que vai a nocaute.

Deu-se nova confusão e o julgamento foi interrompido (desta vez, por uma hora, tendo em vista a necessidade de atendimento médico à jurada).

Ao retornarem, a advogada prosseguiu sua explanação ressaltando que seu cliente foi acusado sem provas, tinha sido detido injustamente e se encontrava em estado de necessidade.

– O pai foi rato, a mãe ratazana. Que opção ele tinha? – diz ela, jogando às favas o politicamente correto, diante do olhar vencedor da mãe.

E continuou: – Se tivesse casa e comida não precisaaááái!!!! O rato, o rato!

– Onde? Onde? – perguntaram todos, enquanto corriam pra subir na mesa, onde a advogada já havia se antecipado e subido.

– Ele deve ter aberto a gaiola. Acho que eu vi ele ali. Não! Aqui!!! Aqui!!! Ele tá subindo na minha roooupaaaaaiiii…

Nesse exato momento, a mesa quebra. Cai toga pra um lado, malhete (martelo do juiz) pro outro e o julgamento é cancelado. Definitivamente…

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