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Fenda do tempo

João, não o Valentão, encontra a sorte da morte na garrafa de cachaça

Publicado

Autor/Imagem:
Hannah Carpeso - Foto Produção Irene Araújo

Seu nome? João.

Discutia.

Sabia que seu limite estava próximo. O teor alcóolico já se fazia sentir no calor do corpo e na confusão das palavras que queria expressar.

A mesa do bar molhada pelo suor das garrafas era testemunha de sua crise. Sofria por querer interromper a mágica do amortecimento da dor, contudo, não conseguia. Desmaiou ali mesmo, sob o olhar de reprovação de tantos outros diferentes dele.

Acostumado, o dono do bar deixou-o quieto, ali. Braços estendidos ao longo do corpo. Cabeça deitada no tampo da mesa à espera do tempo que precisaria para voltar a si. Mergulhado. Vagava na mente alcoolizada. Descobria sua inércia, seu vazio, sua angústia caída na fenda do tempo.

O tempo, tal mesa, tem tampo para caminhar. Depositados nele desejos, tropeços, medos a desafiar.

Estátua esquecida pelo arredor barulhento permaneceu noite adentro até o limite do fechar as portas, quando foi tocado.

Imerso na fenda do tempo, sequer deu conta da mão que lhe batia cada vez mais intensamente. Foi, então, segurado por dois fortes homens e despejado na calçada, diante da porta de aço que deslizava, recebendo o cadeado que a protegeria.

Pobre coitado! Como era visto, permanecia.

Um bêbado? Não.

Um homem que não soube lidar com sua debilidade.

Um homem com medo do enfrentamento da verdade. Um homem sofrido pelo desamor e falta de coragem. Um homem comum como qualquer outro. Só um pouco mais fraco.

Noite escura, clareava. Ele ali, arriado.

De repente, um banho de água fria jogada de um balde que servia para iniciar a limpeza do dia. A começar por espantar ébrios da calçada.

Já estava acostumado. Única forma de acordar da fenda do tempo em que mergulhara. Molhado, enxotado, envergonhado, hora de levantar. Ainda trôpego, caminha em direção arbitrária, procura o rumo de casa.

É um João Alguém.

Sim.

Trabalhador com endereço certo. Carteira profissional em dia. Dívidas e esperanças como qualquer cidadão de bem. Todavia, cansado de esperar por dias melhores, exaurido na capacidade de superar desafios. Um João Alguém como você, eu e muitos Joões ‒ até o João Ninguém.

Somos todos “João” em algum momento. “João valentão é brigão pra dar bofetão, não presta atenção e nem pensa na vida… A todos João intimida”… Letra de música que se encaixa na vida desses “Joões”. No entanto, João é manso. Prefere beber a mostrar punhos. É calmo por fora. Vulcão por dentro. Mas por quê?

Quem é esse João? Dorival canta que “João faz coisas que até Deus duvida, mas tem seus momentos na vida”… “E, quando o cansaço da vida da lida obriga João a se sentar”… É no bar que ele conta mentiras e se espreguiça, depois de entorpecer a mente e mergulhar na fenda do tempo novamente, porque precisa encontrar respostas.

Fendas são espaços vazios. O que João precisa saber no tempo em que mergulha?

Com os olhos em chamas, vê-se preso em casa com suas lembranças e o fim da garrafa pode dizer que tudo passa, mas de nada adianta.

João não sabe dia da semana nem o mês, de tantas decepções que viveu e esta foi a mais cruel, provocando o seu silêncio profundo. Bebe pensando se pode enlouquecer ou deve apenas sorrir? Percebe que não tem como saber, mas implora cuidado ao falar de si.

João é mais do que os seus olhos podem ver… Se quiser, pode assombrar a madrugada… Mas João é manso. Não é das quebradas. Prefere a fenda do tempo, tentativas de novas jornadas.

Nesse hábito boêmio, encontrou um coma alcóolico.

Assim, resolveu seu problema – encontrou, na fenda do tempo, a sua sorte.

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