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Acidente de trânsito

Crônicas do cotidiano pericial onde silêncio fala e palavras ferem

Publicado

Autor/Imagem:
Amilcar da Serra e Silva Netto - Texto e Imagem

Era um dia quente e calmo no Instituto de Criminalística quando meu plantão como perito criminal foi interrompido por uma chamada urgente para atender a uma cena de acidente de trânsito. A ordem era clara: “uniforme dobrado”, um termo do jargão policial que significa “chegue logo, antes que a cidade exploda”, como se a pressa pudesse costurar o tempo e evitar o destino. Um ciclista, disseram, havia se chocado com um ônibus, e a vida o havia abandonado. Era hora do rush, e o local do acidente situava-se em uma das principais artérias viárias da capital, causando um engarrafamento monumental e transtorno geral para a comunidade.

A cena que se descortinava ao chegarmos era um verdadeiro palco de terror: sirenes uivavam, e a multidão, junto com as equipes de reportagem, se amontoava como um enxame de abelhas ávido por testemunhar o corpo e entender o ocorrido. Diante de tal caos, quase todo motivado pela presença do corpo exposto, a primeira ação foi examinar o cadáver e removê-lo, retirando a atração principal desse circo de horrores. A multidão, faminta por detalhes macabros, começou a se dispersar como urubus que perdem a carniça para um predador de classificação superior na cadeia alimentar. Com a remoção do corpo, a pressão sobre a cena do crime aliviou-se como o vapor de uma panela de pressão ao ter sua válvula liberada.

A multidão, saciada por um breve momento de horror, dispersou-se, deixando para trás apenas o congestionamento de veículos.

Em seguida, prosseguimos com os exames periciais, efetuando medições, registros fotográficos e tentando entender a dinâmica do acidente. Foi então que a situação se tornou delicada. A mãe do adolescente que havia perdido a vida chegou ao local, desesperada, gritando: “Cadê meu filho? O que aconteceu com ele? Disseram que foi atropelado! Ele está bem?” A angústia e o desespero eram palpáveis, e ninguém queria dar a triste notícia à mulher. Cada um passava a responsabilidade para o outro, numa hierarquia de evasivas, até que a autoridade policial, querendo poupar a mulher, disse-lhe: “A senhora não se preocupe, ele saiu daqui conversando!”

Nesse instante, o desespero da mulher irrompeu como uma torrente furiosa, arrastando tudo em seu caminho. Seus familiares, aterrados, se converteram em uma cascata de lágrimas e desespero. O delegado, atônito, ficou sem palavras, pois sua última frase, que havia pretendido ser um bálsamo de consolo, agora se revelava uma cruel ironia, um fio de esperança que se transformara em um instrumento de tortura.

No dia seguinte, ao romper da aurora, a verdade se impôs, crua e inclemente. Entre os títulos fúnebres dos jornais, um, em especial, trespassou a nossa compreensão: “ADOLESCENTE SURDO E MUDO MORRE NO TRÂNSITO DESTA CAPITAL”. Eis o desfecho. No instante em que o delegado, com palavras vazias, tentou consolá-la, a mãe compreendeu a hedionda ironia por trás da frase: “ele saiu daqui conversando”. A tragédia, consumada, desabou sobre ela como um rio de dor, impetuoso e avassalador, submergindo as frágeis lembranças do filho que partira num silêncio eterno. Naquele dia, o silêncio se fez eloquente, enquanto as palavras, afiadas como lâminas, cravaram-se nas feridas da vida.

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