Conversa de gatos
Lua e Flechinha, de mundos diferentes, vivem história real
Publicado
emMinha filha foi passar o Réveillon no interior e trouxe sua gata Lua para ficar no meu apartamento. A ferinha, que já havia morado comigo, é uma das protagonistas desta história.
Lua é uma mestiça de siamês gorda (contradição em termos, sei disso, mas que fazer?) de uns 8 anos. Pelo porte e cor do pelo, lembra uma aristocrata havaiana – grande e de carnes abundantes. Minha neta é a escrava dela. Foi criada no interior, em uma casa, e é a única dos meus/nossos gatos que conhece rua. Talvez por isso sua linguagem lembre a de um membro de torcida organizada de futebol.
Ela estava morando na casa de minha neta. Subia em árvores, caçava passarinhos, ficava na janela sendo admirada pelas crianças, tinha a vida que um gato (mesmo castrado) pedira a Deus. Ou a Bastet, a deusa gata do antigo Egito. Aliás, todos os bichanos a reverenciam e sentem muito orgulho de sua origem divina.
Lua estava apavorada com a perspectiva de retornar a um local com grades nas janelas em vez de passarinhos. Miava sem parar, suplicando a Bastet que acabasse com aquele pesadelo. Só parava para bufar pros outros gatos, que a ignoravam solenemente. Todos menos Flechinha, a outra protagonista deste conto.
Flechinha é uma gata de menos de um ano, de longínquos antepassados angorá. Tem lindos olhos azuis e um pelo branco e caramelo, parece um bicho de pelúcia. E come! Chegou com uns 2 meses em minha casa, recém-desmamada, e traçava ração de filhotes, ração de gatos adultos e, quando conseguia, a papinha de Pimenta, uma gata idosa. Resultado: está enorme, das dimensões de um gato adulto, vai ficar do tamanho de uma jaguatirica.
Ignorando os Fu fu mal-humorados de Lua, Flechinha a cumprimentou:
– Oi tia. Você é tão gorda e bonita! Deve gostar de comer, eu gosto muito. Vamos procurar uma coisinha pra devorar?
– Devorar é o cacete, maluco! (Lua não era muito boa em concordância de gênero, membros de torcidas organizadas também não são). Vamos é organizar uma fuga em massa. A gente desce um lance de escada e tá na rua, pra ganhar o mundo…
– Que rua? Que mundo, tia?
Flechinha não sabia, mas filosoficamente era uma solipsista, concepção segundo a qual só existiam ela, suas sensações e, vá lá, os demais gatos e o escravo (o autor destas maltraçadas). O mundo era o meu apartamento; e ela era feliz nele, a princesinha faminta da casa.
– Fu fu! – bufou Lua, exasperada. –Tu acha que só existe esse muquifo?
– Acho sim, tia.
-Tem muito mais coisas lá fora, sua boba. Tem horas que o escravo some, né não? Onde tu pensa que ele vai?
– Sei não… Acho que a deusa gata o leva… mas sempre traz de volta para cuidar da gente.
Lua mudou de tática.
– Olha na janela (Flechinha olhou). Tu não vê outros edifícios, outros escravos se mexendo? Quê que tu acha que eles são?
– Ah, isso eu sei, ouvi meu escravo falando outro dia. E uma coisa chamada cenário misturada com outra chamada efeitos especiais.
– E os insetinhos que entram pela janela? Vêm de onde?
– É a deusa gata que nos dá de presente, tia. Chicletinhos, né?
Lua desistiu e tratou de organizar sua própria fuga. Ficou na entrada do apartamento, como quem não quer nada, emitindo um Fu fu ocasional para os outros gatos; e quando abri a porta, pra pegar o jornal ou algo semelhante, passou voando por mim e desceu as escadas.
– Consegui! – miou triunfante. – Uns degrauzinhos e encontro o portão. Subo nele e salto pra rua, pra liberdade!
Só que a pobre havia se acostumado com a escada da casa de minha fiha, de uns 20 degraus da porta até o portão. E eu moro num 10º andar. Lua desceu até o 9º andar, nada de portão. Hesitou, desceu mais alguns degraus rumo ao 8º andar, nem sombra de portão. Deteve-se e começou a miar lastimosamente.
– Bastet, deusa ingrata! Você deixou que o humano malvado aumentasse a escada e sumisse com o portão e a rua. Vou ficar presa aqui pra sempre!
Ela miava de dar dó quando a encontrei, no meio da escada para o 8º andar, a peguei no colo e voltei ao apartamento.
No dia 2, quando minha filha chegou, Lua pulou no colo dela, miou queixas amargas e foi embora, sem se despedir dos outros gatos e muito menos de mim.
Desde esse dia, a ex-maloqueira pode encontrar o portão escancarado que não foge.
– Pensam que sou boba? Gata esperta, 8 anos de telhado… Vai que, no momento em que eu colocar as patinhas na rua, o humano malvado some outra vez com a rua e vou parar naquele muquifo… Não fujo nem morta!