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Corpo a corpo

Madeixas de Doralina tinham o brilho da alma de uma criança

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Autor/Imagem:
Coletivo de Autores* - Foto Produção Irene Araújo

Numa incerta manhã, desacordada dos dias contínuos e inquietantes vividos em seus tantos anos de graça e glória, Doralina envereda-se em seu inimaginável despertar: seus cabelos haviam desaparecido. (Antonio Gil Neto).

No quarto, ainda em semiescuridão, tenta controlar o pânico que rapidamente se avolumava em seu peito! O que teria acontecido? Abrupta, afasta as cortinas. Não se preocupa em cobrir suas vergonhas, ansiosa por encontrar sobre a cama os fios perdidos de seus longos e vistosos cabelos, mas não vê um único que seja. Como poderia uma cabeleira toda desaparecer? Aquilo não fazia o menor sentido! Com as mãos apalpando a cabeça completamente lisa, sente um vazio absurdo no lugar dos seus belos cabelos ruivos… Ou seriam loiros? Ou azuis? (Cassiano Silveira).

A ausência da lembrança aumenta sua agonia. (Antonio Gil Neto).

O que estava acontecendo? Tenta encadear seus pensamentos de forma lógica, mas … (Cassiano Silveira).

Algo a impede. Tenta novamente recompor, passo a passo, as ações preparatórias para o descanso noturno. Limpara a pele do rosto e pescoço com o creme de limpeza e o lencinho demaquilante, lavara o rosto cuidadosamente, passara o creme nutritivo. A imagem da qual lembrava ter visto no espelho era a de uma pessoa com uma touca de banho na cabeça. (Edna Domenica Merola).

A lua dilui-se inconstante namorando a madrugada a respirar seu devagar. (Antonio Gil Neto).

Que estranha imagem se esfacelando: imagem-sorvete, derretendo… Essa não sou eu… Mas seria quem? ⸺ disse Doralina, num daqueles diálogos internos capazes de nos enlouquecer. Lembra-se de que deixara o banheiro como quem deixa um sarcófago. Joga-se na imensa cama super size, cobre-se, busca carneirinhos saltando cercas e somente apaga após o efeito dos dois comprimidos de Lexotan. Vieram os sonhos. (Gilberto Motta).

E a visão do vazio. (Edna Domenica Merola).

Foi caindo,

caindo,

caindo…

de repente se viu correndo alegremente pelos campos arenosos, avermelhados e poeirentos de Marte. Naqueles distantes e felizes dias primaveris, seus belos, cheirosos, macios e longos cabelos bailavam ao sabor do vento que sibilava redemoinhos de pó acobreados em seu ser risonho. Aquela dança, ora frenética, ora lenta, resultava em gargalhadas estonteantes e giratórias. Sentia as carícias marotas e às vezes ousadas do vento que insistia em despentear suas madeixas caprichosamente penteadas. O perfume cor de topázio que exalava de suas melenas embriagava o ambiente cambaleante. Até que, de súbito, se viu refletida… (Rosilene Souza).

Nas águas negras de um lago profundo. Conversando consigo mesma, Doralina busca desatar seus próprios nós, talvez seu próprio eu. O reflexo lhe conta seu passado, lhe cospe suas culpas e lhe acusa de seus medos. As ondulações na superfície líquida viscosa aumentam em frequência e amplitude, até seus punhos irromperem em vagalhões furiosos de libertação. Após a tormenta, vem a bonança, não necessariamente a redenção. (Cassiano Silveira).

Alguém, algo indizível a espia aprisionado no silêncio das horas salteadas. O torpor de Doralina se aquieta.

Do sonho abrupto, célere, voraz, a claridade do sol da manhã ilumina sua coragem desnuda.

Encolhe os ombros sem sinal de perplexidade. Desarranca o choro embutido do que nem se pode pensar. Assegura-se nos pensamentos mais precisos. Preciosos. Teme o momento seguinte numa espécie de desmoronamento geral.

O som de um violino distante lateja miúdo na janela, em canto de pássaro buscando novo ninho.

As mãos de Doralina repousam no colo como benesses. Passa então de leve os dedos pela calvície como quem brinca pela primeira vez com os líquidos, os vítreos, as pétalas. O plastificado do crânio feito nudez de frio, mais o insólito, a convida para uma ventura como quem muda de lugar inquieto, distante.

Desperta da jaula de suas próprias memórias, seus atos arrebanhados. Acolhe-se apenas nas delicadezas. Pelos seus olhos exalam larguezas e espírito bom.

Dona do espaço fica de cócoras ao espelho feito sapo faminto. Gosta do que vê. Meio circo, meio selvagem. Nem quer ser de pedra. Sua auto-observação esgota-se: o abismo ou o voo. Surpresa-se. Na verdade, precipita-se em vasta velocidade. Como se a dor fosse unicamente perder os cabelos. Doralina é alguém desejando andar facilmente pelos caminhos de alguma eternidade.

Leve levanta-se. Coloca o rosto no lago refletido e sente algo irracional e ditoso impulsionando. É uma força, uma Rapunzel ao contrário. Sua fantasia é sua realidade nua. Traria um bebê no peito. Em torno dele já brincavam outras crianças. Ela e o bebê dos sonhos teriam a cabeça nua para registrar outras histórias.

Seu ventre é uma festa. (Antonio Gil Neto).

Seu coração borbulha.

Sua mente faísca futuros possíveis, caminhos e novas experiência: Doralina agora é livre e pode ser quem quiser! (Cassiano Silveira).

Impregnada de alguéns… (Antonio Gil Neto).

Vai ao encontro do mundo. Desliza no asfalto como a bailarina mais perfeita do pedaço: irresistível e inigualável como uma deusa dos sonhos, desejos e libido. Mesmo sem suas madeixas, sua alma brilha como a de uma menina. (Marlene Xavier Nobre).

*Escritores colaboradores do Café Literário (Antonio Gil Neto, Cassiano Silveira, Edna Domenica Merola, Gilberto Motta, Marlene Xavier Nobre e Rosilene Souza)

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