Colcha de retalhos
Edu, que tudo lembrava, agora repõe lembranças vividas
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emEdu tinha menos de três anos quanto teve sua primeira aventura, quando recebeu sua dose inicial de adrenalina. Lembra que estava na casa da bisavó, dona Neném, mãe de seu avô, também Eduardo. Nunca soube o nome dela, ou esqueceu faz tempo; era dona Neném, ponto. Não vó, não bisa, dona Neném.
Ela morava em um casarão rodeado por muitas árvores. Devia ter caminhos cobertos de cascalho. Foi por um deles que Edu avançou com seu velocípede, impulsionado por suas pernas curtas. Não, não era velocípede, era uma bicicleta pequena, importada, de pneus balão e rodinhas, segurança é essencial. Ele não recorda o resto, mas lembra a sensação de desafiar o perigo ao avançar bem rápido pelo caminho.
Nesse momento, forçando a memória, reconstrói na mente as feições encarquilhadas da bisavó, mas é apenas isso. Não lembra de algum dia ter dormido no casarão (provavelmente dormiu e, diga-se, nasceu ali, não em um hospital) ou de ter recebido um carinho da velha (provavelmente recebeu). Guarda um vago vislumbre de ter brincado entre as árvores com os primos. Essa mescla de recordações é tudo que resta de seus primeiros anos de vida.
Edu tinha menos de cinco anos quando proclamou sua independência. Estava no jardim de infância, esqueceu o nome. Lembra do portão verde, do pátio, das casinhas conjugadas que serviam de salas de aula. E também das feições da professora, dona Vandirce, uma morena bonita, de olhos verdes. As duas irmãs dela, também professoras, desapareceram de sua memória.
Certo dia, Edu pulou o portão e saiu correndo pela rua. Lembra que o ar parecia mais límpido, as cores das árvores e casas se destacavam: era a recompensa pelo aprendizado da rebeldia, pelo exercício da liberdade. Não lembra de ter sentido medo – e tampouco de ser capturado e trazido de volta para a escolinha. Mas isso deve ter acontecido.
Acontece que seu maior desejo, nessa fase, não era fugir sem destino. O pai de dona Vandirce, um senhor de cabelos grisalhos, era da Marinha, e Edu queria porque queria pegar sua espada. Não lembra de ter insistido, mas deve, e muito, porque um dia a professora o levou a um quarto da parte residencial.
O Homem estava ali, de uniforme completo, espada na cinta. Edu lembra do misto de temor e reverência com que o observou, em silêncio completo. O Homem estava sem graça, sozinho na companhia de um menininho. Lentamente, desembainhou a espada. Não a entregou a Edu, não era louco. Depois a guardou e se afastou. Não deviam ter se passado mais de dez minutos, provavelmente bem menos. Edu voltou à sala de aula e brincadeiras, emocionado demais para comentar qualquer coisa com os coleguinhas. Só muito depois, percebeu que havia algo vagamente sexual nesse transetê sem palavras entre criança e adulto.
Não há mais lembranças desse período, nada das brincadeiras nem das aulas. Mas, quando o ano terminou, sabia ler e escrever.
Dias depois, Edu estava em casa, com a mãe, quando do nada ela observou, com a entonação de uma péssima atriz amadora:
– Oh, não seria maravilhoooso se você fosse o orador de sua turma no jardim de infância?
Um segundo depois, a campainha soou e uma professora (não lembra qual, talvez dona Vandirce) entrou na casa para convidá-lo para fazer o discurso de formatura.
– Claaaro que ele aceita! – respondeu a mãe canastrona. – Diga que sim, Edu querido!
Ele não lembra de ter respondido. Não lembra de ter visto a mãe escrever o discurso. Não lembra de tê-lo lido. Não lembra sequer de ter ido à formatura. Mas deve ter feito todas essas coisas.
Porque, desde a infância, sua memória justapõe lembranças vívidas, luminosas, e trechos sombrios, vazios – que predominam por larga margem –, em uma dilacerante colcha de retalhos do psiquismo.