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A sede

Um conto macabro de ferver o sangue no sertão nordestino

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Ele estava morrendo de sede.

Caminhava pela caatinga em estado de transe, sem sentir os dolorosos espinhos dos xique-xiques e de outros cactos típicos desse bioma. Por vezes feria-se nos espinhos de um mandacaru de mais de 5 metros de altura, o que servia para acordá-lo um pouco. Mas logo voltava a avançar, entorpecido, indiferente aos escorpiões, cascavéis e outros animais da região, que por vezes sentia próximo a seus pés. “Eles estão vivos, bom pra eles”, pensou.

Não lembrava seu nome, nem como fora parar no sertão nordestino. Nem quando iniciara seu trajeto. Sabia apenas que era importante percorrer o máximo de distância à noite. Dormia de dia, escapando do calor, em cavernas da região. Há quantos dias? Não sabia. Por quê? Não fazia ideia. O essencial era continuar sua jornada, sem pensar – aliás, havia muito que perdera esse atributo, esse traço distintivo dos homens. Havia se transformado em puro instinto, preocupado apenas em seguir em frente até matar a sede avassaladora.

Finalmente, percebeu traços de presença humana, ainda distante. Como? Não sabia. Talvez visse o tremular de uma luz fraca, ao longe; talvez o vento da noite lhe trouxesse fragmentos de palavras ou o latido de um cachorro; talvez sentisse cheiro de comida ou de qualquer outra coisa que o fez salivar… Seja como for, despertou do semi transe, apressou o passo e seguiu em direção ao mundo dos homens. Pela primeira vez caminhava com um propósito definido, e isso o humanizou, tanto quanto possível. Redescobriu o pensar, o falar, o calcular, o dissimular… Preparou-se mentalmente, como um predador que estende os músculos antes de se precipitar sobre a presa.

Era uma casinha pobre, como tantas outras do sertão. Era feita de taipa e tinha apenas uma porta e duas aberturas que serviam de janelas. O telhado não tinha forro. Junto a ela, num cercadinho, um bode pastoreava seu harém de cabras e alguns cabritinhos. Se havia outros animais, não percebeu.

“Tão frágil… Acho que eu derrubava aquela porta de madeira fina com um ponta-pé”, pensou. Mas não, sentiu que não podia fazer isso, havia rituais a cumprir. Por que, ele não tinha ideia. Mas sabia que existiam normas milenares a serem seguidas, em situações como essa. Entre elas estava o convite para entrar em uma residência – um palácio ou uma choupana, tanto fazia, era preciso ter autorização prévia do dono.

Ele aproximou-se da casinha e bateu palmas.

– Ó de casa! – falou.

Ouviu um barulho no interior, murmúrio de vozes, e então a porta foi aberta cuidadosamente.

– O que é? – perguntou num tom brusco um homem já idoso.

Ele esforçou-se por sorrir, outro atributo humano que havia muito não praticava. Torceu para o velho não se assustasse com a breve visão de seus dentes.

– Boa noite. Meu cavalo morreu de uma picada de cascavel e caminhei umas três horas pra chegar até aqui Posso entrar e descansar um pouco, tomar uma caneca de água?

O velho olhou-o bem, em silêncio, e não gostou do que viu. Um homem muito pálido, sem idade definida, de roupas sujas e rasgadas pelos espinhos das plantas da caatinga… Mas a hospitalidade no sertão é sagrada. Assim, depois de algum tempo, concordou.

– Pode entrar – falou.

Ele pareceu retesar os músculos e entrou no casebre logo atrás do dono da casa. No momento seguinte, saltou rosnando sobre a presa e cravou os caninos afiados na jugular do velho. Bebeu longamente o sangue que jorrava, saciando sua sede. Depois olhou em volta e viu outra vítima, uma mulher também idosa que uivava apavorada. Atacou-a e bebeu-lhe o sangue até matá-la, sentindo-se então, pela primeira vez em incontáveis noites, plenamente revigorado.

Com a sensação de bem-estar, renasceram memórias sufocadas pela sede. Ele soube, não quem era, isso estava esquecido há muitos séculos, mas o que era e o que estava destinado a fazer, por toda a eternidade. Recordou por que não podia se expor ao Sol; como a alvorada despontaria em pouco tempo, deitou-se para repousar junto aos cadáveres. Eles não o incomodavam, eram apenas odres vazios de sangue.

Acordou minutos antes do cair da noite. Sabia que não podia permanecer ali, o odor dos cadáveres atrairia aves carniceiras e pessoas. Cortou as cabeças das duas carcaças, para que ninguém visse as marcas de suas presas na jugular. Partiria logo e enterraria os troféus macabros no caminho, bem distantes uma da outra.

Antes de ir embora e continuar suas andanças pelo sertão nordestino, pegou um cabritinho no cercado e sugou-o até matá-lo – mas era algo insatisfatório, nada comparável ao banquete de sangue humano que tivera. Mas, pelo menos, serviria para afastar por alguns dias (não, mais provável algumas horas) a sede que voltaria. Inexorável, terrível e impiedosa, ela sempre retornava.

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