A história tatuada
Fome de viver a solidão enfrenta dias e noites de inanição
Publicado
em* “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem/Que é pra te dar coragem…”
O homem respirou fundo, alongou o corpo magérrimo e entrou na caixa de vidro. Lá dentro, dezenas de serpentes e aranhas o esperavam. Deitou-se sobre a cama de pregos num ritual lento, planejado. O desafio agora seria permanecer lá, por 101 dias, em absoluto jejum. No corpo de Heráclis (assim era conhecido o faquir) trinta e três tatuagens feitas em pontos diferentes registravam as suas andanças e espetáculos por toda a América do Sul.
Apesar de solitário e andarilho, o homem tinha família e desejava fixar o viver em um cantinho apenas dele; sem pregos, público ou cobras. Conceição, a parceira que vendia os bilhetes e recebia o dinheiro nas apresentações, pariu com ele um casal de filhos: a filha tornou-se benzedeira bem reconhecida e o filho, ainda na infância, morreu de tétano, após pisar em um prego, desavisado. Agora, após décadas de desafios, Heráclis buscava o maior deles: quebrar o recorde mundial de 100 dias de jejum, marca que pertencia ao lendário faquir Silki.
“Levo em meu centro anímico a sabedoria, o planejamento, a magia e a coragem”, respondia sempre o velho faquir aos repórteres nas cidades por onde passava.
Coragem e fome de viver.
“...de seguir viagem quando a noite vem…”
O homem deitou dentro da caixa de vidro. Nem pensou na vida e se enfiou com as cobras. Atrás dele tinha toda uma estrada de quarenta anos meditando sobre pregos. Lembrou-se da amante cigana que um dia lhe fez feliz, da mãe macumbeira que lhe fechou o corpo. Do pai que nunca conheceu. Pensou alguma coisa a mais e nem sentiu vertigem com a perspectiva de ficar trancado por 101 dias naquela condição. Na madrugada, o homem respirou fundo dentro da caixa de vidro. Pensou nos filhos, na mulher e em tudo. A cachorra Laika, o balanço que construiu para os filhos, a mãe que morreu de câncer, do tempo que não tinha dinheiro para pegar o ônibus para treinar no time e acabar esquecendo a vida de jogador de futebol.
“… que você pega, esfrega/ Nega, mas não lavas…”
Lembrou-se de tudo.
Mas não esqueceu da sua situação de faquir.
Naquela caixa de vidro, a vida se espelhou.
Coração e fome de viver
“… que logo te alucina/ Salta e se ilumina...”
Naquele dia, chegara o homem elegante de gravata com a proposta dos “donos da cidade” para que ele fizesse uma apresentação pública de apoio ao partido político. O faquir pegou o dinheiro e deitou-se com as cobras.
“… quero pesar feito cruz/ Nas tuas costas/Que te retalha em postas/Mas no fundo gostas…”
“Se tudo der certo… Ah! ficarei para sempre afamado; serei quase um Messias, um Arauto da Vitória do Desejo de enfrentar a morte apenas com a fome de viver”.
Coragem, jejum de matéria e alma.
“... e nos músculos exaustos/ Do teu braço/ Repousar frouxa, farta/ Murcha, morta de cansaço...”
Poderia enfim esquecer as dívidas, parar com tanto risco, curtir a vidinha comum do morro e descansar. Esquecer a cama de pregos, as aranhas e as serpentes. Nunca mais sentir fome de nada além do desejo de viver.
“… Corações de mãe, arpões/Sereias e serpentes/Que te rabiscam/O corpo todo/Mas não sentes…”
De repente, o homem foi sentindo um torpor e ainda pôde ver o lado externo da caixa de vidro: a rua, a multidão em delírio, a casa da infância, sua mulher, os filhos e os netos que jamais nasceriam. Tudo; e nada. Em um segundo, compreendeu os desafios da fome de viver, seus dons e talentos. O anonimato e o esquecimento. Coragem e morte por dias e dias de absoluta inanição.
Fome de viver e solidão.
…………….
*Versos da canção TATUAGEM, de Chico Buarque de Holanda.