Linda juventude
Do Rio 40 graus sobrou apenas o vale tudo da Babilônia carioca
Publicado
emEntre as numerosas e variadas reminiscências do Rio Maravilha, aquele onde se plantando tudo dava, o que mais assusta a mim e aos turistas é o verbo perder no pretérito perfeito do indicativo, conjugação que gera o temido perdeu, perdeu, perdeu. Lembro que, no meu tempo de rapazote, perdeu era só uma metáfora usada pelas mães das mocinhas desvirginadas. Nas conversas entre vizinhas, o fato era anunciado de forma bem peculiar. A mãe da dita cuja informava às demais que, apesar dos conselhos, a filha se perdera com fulano. Na verdade, ela havia se achado antes com ciclano, mas acabou no altar, sem véu e sem grinalda, com beltrano.
Era a chamada suruba casamenteira ou a vida suburbana do amor escondido. O tal do siri na lata era – e é – somente uma película sem graça, incômoda, intervencionista e cuidadora da casa do trem sem freio. Importante para mães e pais, para a juventude da época (para a de hoje nem se fala) não fazia diferença alguma tê-lo ou não tê-lo. Para os varões, fundamental era o tesouro no fim do túnel. Rasgado ou não, o plástico que encapava o mapa era ignorado ou desconhecido da maioria. Os que faziam questão do invólucro normalmente acabavam – ou começavam – sendo brindados com o que os touros carregam na cabeça.
Nada de regra. Tratava-se apenas da conclusão do que alguém tinha começado. Página de um livro bom, nossa linda juventude, também conhecida por juventude transviada, não tinha tabus. Para uns, o dominante era o beijinho, beijinho, pau, pau. Para outros, servia o ferro na boneca. Um terceiro grupo preferia o abajur cor de carne. Não sei se me entendem, mas esses viviam em busca da baleia do Mestre Jonas. Quando descobertos, se limitavam a responder aos incrédulos do nosso tempo e lugar que o enrosco não passou de um caso comum de trânsito. O que dizer contra ele ter dado o rádio? Nada, além de informá-lo da necessidade de dar sem as pilhas. Tarde demais.
Afinal, deu tá dado. Eu já dei com os burros n’água, mas nunca o rádio. Quem me conhece, sabe disso. Para os que não me conhecem, basta olhar no fundo dos meus olhos para ver que ainda sou como antes. Graças ao bom Deus. Sou daqueles apetrechados e convictos de que no tempo do Clube da Esquina os homens eram masculinizados pela capacidade da conquista ou pelo tamanho dos pés. Na disputa feminina pelos tamanhos acima de 43 valia tapas, rabos de arraia e caranguejadas como testes de avaliação. Hoje, o recado é dado conforme as bandeiras dos cartões de crédito e de acordo com o posto cravado em alto relevo no crachá funcional. Ter 14 ou 15 anos há cinco ou seis décadas e pé 41 era um handicap capaz de compensar algumas deficiências físicas, como pesar pouco mais de 40 quilos.
Esse cara era eu: um magricela de olhos vivos e enlouquecido pela vizinha de anatomia avantajada e nádegas exageradamente protuberantes, algo como séculos em vez de anos. Era casada, mas permitiu minha aproximação. Bati à porta, entrei, enquanto ela se colocava na posição de combate. De frente, nem pensar. Nunca chegaria aonde desejava. A solução foi o tal do decúbito dorsal à beira da alcova. Maldita posição. Quase nas vias de fato, o telefone tocou no criado mudo na outra extremidade. Ao se levantar para atender ao chamado, a moça, robusta até a alma, levou-me junto das abundâncias. Levei horas para sair. Esse era o Rio 40 graus à sombra, no qual valia quase tudo. Só não valia dançar homem com homem e nem mulher com mulher. Atualmente vale tudo na grande Babilônia que é o Rio de Janeiro, inclusive roubar sem fazer e gemer sem sentir dor.
*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras