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Purpurina

Cansado do armário, jornalista resgata vestido e assume lado drag queen

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Isidro só queria ser bonita.

Desde criança ele achava lindas as roupas de menina. Não vestia as da irmã, que era dois anos mais nova e bem menor que ele, e nem as da mãe, sabia que era um limite que não deveria cruzar; mas passava horas olhando-as, deslizando as mãos pelo tecido macio, acompanhando com os dedos as curvas dos bordados.

Certo dia, a tentação foi forte demais. Os pais haviam saído, levado a irmã ao médico, ele estava sozinho em casa. Sabia que dispunha de umas duas horas, talvez um pouco mais, para fazer o que quisesse, o que ousasse. Foi ao quarto de casal, abriu o guarda-roupa da mãe e tirou um vestido de seda, um de seus preferidos, adorava acariciá-lo. Tirou a camiseta, o calção e a cueca bem devagar e permaneceu olhando para o fruto proibido por uns 20 minutos, reunindo coragem para dar o último passo.

Afinal vestiu o vestido sobre o corpo nu, tremendo de frio e de prazer com a sensação do tecido macio deslizando sobre a pele. Ficou excitado – uma das primeiras ereções de sua vida sem se tocar.

O menino contemplou-se no espelho por longos minutos, achando-se lindo e imaginando que ficaria ainda mais atraente se aplicasse no rosto o batom e as outras coisas que via a mãe usar. Mas não teve coragem, sabia que já havia avançado o suficiente para seus 8 anos. Com um suspiro de tristeza, despiu-se e pendurou cuidadosamente o vestido no cabide, com o máximo de cuidado para não amassar. Depois vestiu-se e foi bater uma bola com a turminha da rua.

Na verdade, além de achar deslumbrantes as roupas femininas, Isidro sonhava em ser uma garota. Muitas vezes cobria os cabelos cortados curtos com um pano, como se fosse um xale, e via seu rosto de feições regulares tornar-se repentina e perturbadoramente belo.

Na adolescência esses impulsos diminuíram, mas jamais cessaram. Ele havia feito troca-troca com os amiguinhos, todos os garotos fizeram. Mas não sentia uma atração especial por meninos. Namorou garotas, perdeu a virgindade com uma namorada aos 16 anos, primeira vez dele e dela. Houve diversas outras. Só que, depois de uma transa, ele contemplava longamente a moça e dava um sorriso enigmático, que anunciava, sem se materializar, um risinho. Ela ficava feliz, julgando que o rapaz estava se envolvendo e ia pedi-la em namoro, sem imaginar que ele a estava examinando criticamente para concluir, “Sou muito mais bonito que você”. Era, a rigor, um quase riso de satisfação, com pitadas de presunção. Depois disso, quando estava sozinho no banheiro, ele vestia as peças que a parceira havia deixado caídas no chão e se contemplava. Isso o excitava, ele tirava as roupas rapidinho e partia para outra, a garota ficava deliciada.

Aos 18 anos, Isidro e os amigos criaram um bloco de carnaval, A turma das vadias, e passavam quatro dias vestidos de mulher. Era a glória. Alguns iam bem escrachados, com sutiãs por cima da camisa e barba por fazer, mas ele se produzia todo, aplicava maquiagem, sombra nos olhos. “Estou lindo”, dizia sempre para si mesmo.

Eram muitos os que concordavam. Alguns homens se aproximavam, tocavam-no, convidavam-no para uma rapidinha, mas ele os afastava com firmeza. E muitas mulheres faziam o mesmo. Nesses casos ele cedia, enrubescendo como se estivesse envergonhado(a) – era algo inato, o fingir-se encabulado e corar – e fazendo tremular as pestanas como uma malagueña salerosa; e depois, na cama, conduzia a transa como um encontro lésbico, exceto quando a mulher pedia a penetração. Isidro passava quatro dias nessa toada, brincando com os amigos à tarde, sem beber muito – um porre e a ressaca subsequente estragariam o efeito da produção cuidadosa, que o envolvia numa nuvem de beleza –, transando com mulheres atraídas por homens de feições femininas à noite, dormindo de manhã, e voltava para casa na Quarta-Feira de Cinzas, no auge do contentamento.

Aos 23 anos, jornalista recém-formado, Isidro casou com uma colega de trabalho. Dois anos depois, havia dois filhos para criar. Sentiu uma pitada de desapontamento por serem dois meninos, adoraria ser pai de uma menininha, comprar roupas para ela, acompanhar passo a passo o seu desenvolvimento. Era um pai devotado e um bom marido – mas, no Carnaval, a esposa aceitava, resignada, ele vestia-se de mulher, maquiava-se com esmero e saía, entregando-se à rotina de brincadeiras, seduções e transas iniciada na juventude, para só voltar na quarta-feira. Pra tudo se acabar na quarta-feira.

Mas teve um ano em que não acabou. Isidro voltou pra casa, como sempre fazia, beijou a mulher e os filhos, como sempre fazia, e tomou um banho, obrigatório. Mas saiu do banheiro vestido de mulher, com um vestido que havia comprado antes do Carnaval (seria uma indelicadeza colocar uma roupa da esposa) e maquiagem leve. Olhou para a mulher e disse:

– Acabou querida. Amo você, adoro as crianças, não vai faltar nada pra vocês, mas de hoje em diante vou viver em purpurina.

E assim foi. Mudou-se para um pequeno apartamento, de onde faz frilas para diversas redações, sempre com roupas de mulher. Passou a chamar-se Isadora, variante do seu nome de batismo e uma homenagem a Isadora Duncan, bailarina e diva. Sai pouco do apartamento; quando tem de fazê-lo, veste-se como uma dona de casa bem-comportada. Arranjou um namorado, é de praxe, mas descobriu que não curte muito lances homossexuais. Descobriu-se bissexual e prefere sair com mulheres que gostam de fazer com um crossdresser, despi-lo carinhosamente e maquiá-lo com capricho após a transa. Mesmo com elas, porém, o prazer não é muito intenso. Na verdade, o clímax emocional – não a descarga física – não vem quando está despido, e sim vestido.

Isso acontece quando se enfeita para a noite, o tempo da magia. A noite é sagrada, é para se montar sem a menor pressa, colocar vestidos lindos de seda ou cetim (que lembram vagamente os de sua mãe) e perucas esfuziantes, uma maquiagem over, mais que exagerada, sapatos de salto agulha e partir para as festas em purpurina das drag queens. Não para arranjar um bofe, isso é tão fácil que chega a ser tedioso, mas para tricotar com as amigas, todas elas rainhas da noite, sobre os últimos babados fortes do mundo trans.

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