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Sandoval e Maria Lúcia

Hipocondríaco usava hospital como um motel

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Sandoval, apesar de não ter sido criado pelo avô, guardava na memória momentos com o velho. Não de brincadeiras, mas de lamúrias, já que o homem vivia reclamando de dores aqui, enjoos ali, tonturas acolá. Se bobeasse, não sobraria dia que não fosse morrer.

Quanto à avó, fazia o tipo durona. Raramente quedava, mesmo durante febres altíssimas. Encarava aquilo como ocasiões que faziam parte da vida. Quando caiu acamada, quedou de vez. Ouviu-se suspiro único, talvez de alívio. Por sorte do marido, que vivera uma vida inteira de lamúrias, ele sucumbiu três meses antes.

O neto não se recordava de ter chorado a partida dos avós. Aos sete anos, talvez fosse ainda muito jovem para perceber que aqueles instantes não seriam um até logo, mas o adeus definitivo. Artimanhas da natureza, que protege as crianças de certas agruras.

O menino cresceu e, apesar de certas peculiaridades, não se distinguia tanto dos coleguinhas. Quer dizer, tirando o fato de Sandoval prestar mais atenção aos anúncios de remédios do que aos desenhos animados ou, então, parecer sentir mais prazer em tomar uma aspirina a um sorvete com cobertura de chocolate.

Aos 18 anos, conheceu Maria Lúcia, atendente da farmácia da esquina. De tanto ir até lá perguntar sobre os novos lançamentos, Sandoval acabou engatando um namoro com a moça. Para falar a verdade, a guria foi a primeira de uma série que não ligou para as manias do gajo. Melhor, ela até considerava qualidade, pois via nisso algo como preocupação com a saúde.

Aos 25 anos, com carreira promissora de concursado do Banco do Brasil, Sandoval pediu a mão de Maria Lúcia em casamento. Isso após um longo período de namoro, que familiares e amigos imaginavam que não iria vingar. Vingou, para surpresa até da mulher, que, a essa altura do campeonato, era farmacêutica de formação e proprietária da mesma farmácia da esquina.

Mais alguns anos, os filhos começaram a chegar. O primogênito Carlos e, em seguida, as gêmeas Adriana e Paula. A correria da família era tamanha, mas tudo, aos trancos e barrancos, acabou se ajeitando, até que, quase num passe de mágica, toda a cria estava formada, empregada e, não tardou, cada um se ajeitou nos próprios cantos.

Sandoval e Maria Lúcia, já passados dos 60 anos, se perceberam praticamente sozinhos. A esposa até gostou de ter mais tempo para o casal, enquanto o homem começou a ser assombrado pelo medo da morte. Dessa forma, ele passou a ter certeza de que não chegaria ao fim daquele dia.

— Maria Lúcia, não quero ser cremado.

— Que história mais boba, meu amor!

— Que nada! A minha hora chegou.

Maria Lúcia, apesar de conhecer as manias do esposo, tratou de correr com ele para o hospital. Consultas, exames, mas nada de anormal. Quer dizer, um sobrepeso, que poderia ser facilmente resolvido com dieta e ginástica.

O casal retornou para casa. O problema é que, na semana seguinte, nova certeza de morte acometeu o sujeito. E lá foi a Maria Lúcia levar o amado novamente para o hospital, onde, dessa vez, o médico achou por bem interná-lo. Não porque considerasse situação de risco, mas para aplacar a ansiedade do paciente.

No dia seguinte, após alta médica, Sandoval, sorriso nos lábios, retornou para o lar doce lar. Entretanto, alguns dias depois, nova internação. No dia seguinte, nova alta. E assim aqueles dois passaram a viver, pois, pelo menos uma vez por mês, dormiam entre uma e três noites no hospital. Sandoval como paciente; Maria Lúcia, acompanhante.

Certa feita, os pombinhos, já acomodados no sofá da sala para assistir a um filme, perceberam que o vizinho estava dando uma festa de arromba, com som nas alturas. Maria Lúcia, que não era afeita a discussão, olhou para o Sandoval e disse:

— Amor, que tal uma noite tranquila no hospital?

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*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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