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A sorte da anã Catarina

Quando um bilhete não premiado gera amor, paixão e morte

Publicado

Autor/Imagem:
Gilberto Motta - Texto e imagem

“Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no chão… É a sorte grande, simpatia!”.

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Catarina chegava sempre com o bordão da esperança:

– Olha aí, capitão! A cobra tá te perseguindo! o bilhete caiu ali no chão… é a sorte grande, capitão!

Mulher de corpo mínimo, lábios carnudos, cabelos loiros de tintura, seios e pés enormes, desproporcionais. Os pés de Catarina dariam uma tese acadêmica. As sandálias, então, seriam um capítulo à parte. Jamais conheci criatura tão imensa em sentimentos feito Catarina. Vivia ali pelos lados do mercado público e nunca se soube, ao certo, a sua origem. Era uma anã “ao contrário”. Tudo aquilo que queríamos ser no quesito liberdade. Até que um dia a sorte lhe veio de viés.

2
O negro Adilson saíra de Laguna com um firme desejo: ganhar a cidade grande e ser alguém na vida. Desceu no terminal urbano e sonhou com as manchetes da TV. Seria o melhor engraxate que a capital jamais conhecera. Logo, percebeu que o caminho para a glória passaria pelo mercado público. Semanas após, já era conhecido pelo talento em dar brilho nos sapatos de figurões no Box 32. O tempo tecia suas tramas parecendo não se importar com as figuras de Catarina e Adilson. Semanas passariam até o desfecho final: dois lados de uma mesma moeda à espera de um encontro. O mercado público nunca mais seria o mesmo.

3
A anã chegava cedo ao mercado para vender seus bilhetes. Entre um negócio e outro, suas histórias seriam construídas. Aquela do ex-garçom do mais tradicional restaurante da cidade, o Linda Cap, que a pedira em casamento e tudo, de papel passado, mas Catarina dera de ombros. A outra, do velho turco, anotador do jogo do bicho, que lhe prometera fortunas e uma casa na Lagoa da Conceição. Tem também a história do emérito conselheiro do Tribunal de Contas que, entre uma dose e outra, escrevia poesias eróticas para a amada anã. De fato, Catarina provocava estranhamentos e insólitas paixões.

4
Adilson era um belo negro. Menino ainda, por volta dos dezesseis, não conhecia os desmandos que a vida impõe àqueles que estão na rua. E foi assim, do luxo dos sapatos brilhantes dos bacanas da cidade até ter com a violência da vida marginal foi um pulo. Subiu o morro da Prainha e se vendeu aos dragões. Fez amigos de baladas e lambanças, e se sujeitou aos desmandos da vida por um fio. Fumou, cheirou e se entregou ao crack. Meses depois, o belo negro estava um farrapo. Um cara alucinado vagando pela cidade.

5
Naquela noite, Catarina sonhou que acertara na loteca. Comprara um carrão importado e cedera, enfim, ao pedido de casamento do conselheiro. Acordou lá pelas cinco da manhã e, como de hábito, acendeu as velhas no pequeno altar dedicado a Nossa Senhora do Desterro,. Produziu a detalhada maquiagem, untou os cabelos com laquê barato e foi feliz para o trabalho. Adilson fumou crack a noite inteira. Acordou com tiros no alto do morro. Pegou a caixa de engraxar e desceu para o velho mercado. Antes do meio dia, os dois se encontraram pela primeira vez.

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– Olha aí, bonitão! A cobra tá te perseguindo! O bilhete caiu no chão… É a sorte grande, simpatia! – disse a anã para o negro.

– Quanto é a tira, coisa linda? – respondeu Adilson hipnotizado.

– Pra você, é só cinco pratas; e olha que é extração especial, de Páscoa…vale quinhentos mil se der na cabeça! – informou Catarina.

Adilson juntou os trocados da manhã e comprou o bilhete sem tirar o olhar dos olhos da anã. Era o da cobra. A paixão instantânea selou a vida e armou o bote.

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Era sábado e o mercado público estava em chamas. O Boi de Mamão do Sambaqui se apresentava no vão central. A prefeitura armara uma grande festa para comemorar a semana de Páscoa. Até o vento sul abrira um precedente e não soprara na ilha naquele fim de semana. A cidade estava em paz, contemplativa. Os corações de Adilson e Catarina, batendo em descompasso. Ao cair da tarde, o primeiro beijo. No início da noite, as carícias mais íntimas. Nas primeiras horas da madrugada de domingo, o sexo consumado em baixo da terceira ponte que une o continente à ilha. Depois, a sorte rolou seus dados na loteria do destino.

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Catarina nascera com o tamanho de um bebê qualquer. Com o passar do tempo, a condição de seu futuro de anã foi se delineando. Atingira a idade adulta tendo exatos um metro e vinte e cinco centímetros, lábios carnudos e pés desproporcionais. O corpo miúdo de Catarina foi encontrado no início da tarde em um bebedouro abandonado sob a terceira ponte. As pedras foram insuficientes para ocultá-lo e os pés da anã serviram de faróis para a terrível localização. O negro engraxate se escondeu por uma semana nos mocós da Prainha. Preso, foi levado para a cadeia pública onde morreu assassinado por espancamento. “Justiça feita pelos amigos marginais”, diria o delegado à reportagem do jornal da TV.

Dizem que, ainda hoje, nas tardes de sábado, quando o vento sul sopra na ilha, a anã Catarina pode ser vista negociando seus bilhetes pelas ruas estreitas do centro da cidade.

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