Leitura dominical*
Tempo ensina que é preciso coragem para resgatar a memória
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em“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.” Os versos de Antônio Cícero, em Guardar, traduzem a essência da memória: não um arquivo morto de lembranças, mas um tesouro vivo que pulsa e dialoga com o presente e o futuro.
Memórias não são apenas fragmentos do que fomos. São bússolas, oferecendo perspectivas sobre o que somos e pistas para o que podemos nos tornar. Ao contrário de um saudosismo paralisante, o exercício de revisitar lembranças — amores vividos, dificuldades enfrentadas, conquistas celebradas ou fracassos superados — carrega o poder de nos ancorar na realidade e inspirar novos rumos.
Refletir sobre o passado não é carregar o peso de erros ou mágoas, mas encontrar significado em cada experiência. Aquilo que parecia irrelevante, ao ser revisto com o olhar da maturidade, pode revelar lições valiosas. Amores ensinam sobre entrega e vulnerabilidade; derrotas, sobre resiliência e adaptação. Até mesmo as sombras das nossas lembranças têm algo a iluminar.
Esquecer ou relegar o que vivemos ao fundo das gavetas da mente é negar parte de quem somos. Cada fragmento da memória, por mais singelo ou doloroso, contribui para o mosaico de nossa identidade. São as vitórias que nos fortalecem, as perdas que nos ensinam a reconstruir, as convivências que revelam nossa humanidade.
Como uma espécie de espelho atemporal, a memória reflete nossa essência. Ela nos lembra que, apesar das mudanças trazidas pelo tempo, algo permanece imutável: a base de quem somos. E é justamente essa essência que orienta nossas escolhas e nos prepara para o por vir.
Assim como no poema de Cícero, “guardar” é valorizar, é permitir que o passado tenha um papel ativo em nossas vidas. Ao revisitar o que vivemos, não buscamos refúgio no ontem, mas aprendemos a viver melhor o hoje e a planejar com mais sabedoria o amanhã.
Reflexões são indispensáveis para quem deseja crescer e se transformar. A memória, quando tratada com o devido respeito, deixa de ser um peso ou um museu de velhas histórias para se tornar um farol que ilumina nossos passos e nos inspira a seguir em frente.
O bom e o ruim — e até mesmo o não tão bom — têm relevância. Afinal, como bem disse Guimarães Rosa, “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” E coragem é, também, lembrar.
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*Este artigo é em homenagem à memória de Antônio Cícero, que, com sua poesia, nos ensinou a guardar o essencial da vida. Seu legado permanece como um farol, lembrando-nos que o ato de guardar é também um ato de resistência.