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Crônicas periciais

Quando a mentira cai diante da geometria do crime

Publicado

Autor/Imagem:
Amilcar da Serra e Silva Netto - Texto e Imagem

Sob o teto daquela casa, a tragédia fez seu ninho. A Perícia Oficial foi convocada às pressas para desvendar o enigma de um crime hediondo: um homicídio. A companheira da vítima, com o rosto marcado pelos traços da desgraça e do desespero, clamava por legítima defesa. O revólver, arma fatídica do crime, jazia desprezado na varanda da frente, enquanto, no chão da sala, próximo ao corpo do companheiro, uma grossa barra de aço de construção se erguia como uma sentinela silenciosa, parecendo querer alertar sobre uma violência que culminou em morte. A história protestava por justiça, murmurando uma narrativa de agressão e uma reação desesperada para preservar a própria vida.

Nos breves dias em que compartilharam o mesmo lar, a relação de afetividade existente entre o casal foi se deteriorando e extinguiu-se sob o peso de uma convivência conturbada. Ele, o mais velho, prendia-a com um ciúme sufocante, enquanto ela tentava navegar por aquele mar tempestuoso de possessividade e desconfiança. Assim, naquele dia fatídico, sob uma atmosfera de mistério que ela afirmava não compreender a motivação, a tragédia irrompeu, selando para sempre o destino do casal.

Seu parceiro, tomado por uma fúria insaciável que parecia emergir das profundezas do inferno, lhe desferiu tapas e socos violentos, revelando um lado de si jamais antes visto. Seus olhos, agora selvagens como os de uma fera encurralada, fixaram-se na robusta barra de aço de construção, que mais tarde seria encontrada caída ao lado do corpo da vítima. Com passos largos, ele se apossou da arma improvisada, tremendo em sua mão como um prenúncio de morte.

Diante da ameaça iminente, ela correu para o quarto do casal, batendo a porta que dava para a sala, sem poder trancá-la, pois não tinha a chave. O som do impacto da barra de ferro contra a madeira ecoava pelo ar enquanto seu marido, tomado pela ira, batia e empurrava a porta com força. Em um ato de desespero, ela calçou a porta com um dos pés e, inclinando o corpo para o lado, conseguiu alcançar um revólver que seu parceiro mantinha em uma estante próxima.

Com mãos trêmulas, apanhou a arma e rapidamente a municiou. Mas o tempo se esgotava; seu esforço para conter a porta não era mais suficiente e a porta começava a ceder. Quando a porta se abriu, ela se afastou pra trás e não hesitou: disparou, e o eco do tiro ressoou como um lamento no ar. O corpo dele tombou; a barra de aço caiu ao seu lado, como um símbolo silencioso de sua fúria extinta.

Desesperada, ela abandonou a casa, deixando para trás a arma, repousando sobre o piso da varanda como um testemunho sombrio de uma cena marcada pela tragédia.

À sombra da narrativa da parceira da vítima e após um minucioso escrutínio das acusações e provas que permearam o local do crime, o perito dirigiu-se à autoridade policial e ponderou que a versão da mulher não se sustentava. Em vez de ter agido sob a justificativa da legítima defesa, ela perpetrara o ato de maneira vil, dolosa e premeditada. O delegado, surpreso e levemente indignado, arqueou uma sobrancelha e indagou:

— Que justificativa você tem para acusar essa pobre alma, que apenas tentou se defender do ataque brutal de seu parceiro?

O perito, com a serenidade de um cirurgião diante do bisturi, dissecou a versão da mulher com a precisão de um gavião. A farsa desmoronava sob o peso incontestável das evidências. A porta, testemunha muda, porém eloquente, possuía uma fechadura defeituosa. Quando batida, esta trancava-se obstinadamente, podendo somente ser aberta por dentro. Agora, se uma mulher tivesse efetivamente batido a porta, por que teria necessidade de calçá-la com o pé, como alegava? Tal ação seria desnecessária, pois seu suposto agressor não conseguiria abri-la pelo lado de fora.

Por outro lado, uma análise geométrica do cenário revelava a improbabilidade da versão apresentada. A distância entre a arma, a munição e a porta não sustentavam a possibilidade física e lógica do acontecimento. Manter a porta fechada, alcançar o revólver que se encontrava distanciado e carrega-lo, tudo ao mesmo tempo, exigia a agilidade de um malabarista e a destreza de um ilusionista – algo claramente fora do alcance da acusada.

A cena do crime revelava-se, portanto, em sua fria e implacável lógica: a mulher, com a porta trancada e o marido aprisionado do lado de fora, tendo todo o tempo do mundo para pensar e engendrar um plano, premeditadamente se aproximou da arma, municiou-a e, movida por animus necandi, partiu com o objetivo de tirar a vida do companheiro.

— Quanto ao trajeto do projétil — prosseguiu o perito, desfazendo as dúvidas como uma névoa que se dissipa ao sol — penetrou no crânio pela parte superior, traçando uma trajetória descendente até a base da nuca. Considerando a notável diferença de altura entre a acusada e a vítima, o disparo fatal só poderia ter ocorrido se a vítima estivesse ajoelhada ou sentada, uma posição vulnerável que selou seu destino. Além disso, havia sujidades presentes na calça, concentradas na região dos joelhos e as manchas de sangue na parede, dispostas em uma configuração geométrica compatível com a altura do ferimento, estando a vítima de joelhos, reforçam a teoria de que a vítima estava, de fato, ajoelhada, uma posição que indicava que a vítima se encontrava dominada e indefesa.

A cena se desenhava com contornos nítidos: a mulher, com a arma empunhada e um controle glacial da situação, abriu a porta com um movimento calculado, dominando o companheiro que, indefeso e paralisado sob a mira implacável do revólver, foi invocado a joelhar- se em um gesto de submissão. Então, com um movimento preciso e letal, ela disparou um tiro, cujo projeto traçou um trajeto mortal e inexorável, em diagonal, do alto da cabeça até a nuca, selando o destino da vítima com um único e fatal gesto.

O delegado, imerso em silêncio contemplativo, assistia ao desmoronamento de uma fachada de inocência, percebendo que a verdade, muitas vezes, se esconde por trás de uma máscara de aparente simplicidade, revelando-se, por fim, numa complexidade tão fascinante quanto aterradora.

Desfecho – justiça dos fatos
O tribunal foi lotado naquele dia. No banco dos réus, a mulher que outrora reivindicou a condição de vítima, sentou-se com uma expressão petrificada, os olhos fixos no vazio, como se os acontecimentos dos últimos meses fossem um pesadelo do qual ainda esperava acordar. No entanto, a perícia era irrefutável. A lógica dos fatos, exposta como um quebra-cabeça montado peça por peça, trouxe à tona uma verdade sombria: a suposta legítima defesa era, na verdade, um ato deliberado de premeditação e frieza.

A promotoria, com base no laudo pericial, apresentou uma narrativa contundente: a mulher, movida por uma combinação de ressentimento acumulado e desejo de liberação, aproveitou o momento de vulnerabilidade do companheiro para executar seu plano. A defesa, por sua vez, tentou sustentar a tese de que o desespero e a violência do parceiro levaram a acusada a agir impulsivamente. No entanto, as provas, frias como o aço, não deixaram margem para dúvidas.

O depoimento do perito foi a peça central do julgamento. Com a precisão de quem havia revisitado cada detalhe da cena do crime, ele descreveu a geometria do acontecimento: a posição do corpo, o ângulo do tiro, as sujidades nos joelhos da calça, as manchas de sangue em altura compatível com a vítima ajoelhada e a fechadura defeituosa, que só permitia a abertura da porta por dentro. Cada ponto sustentava uma única conclusão. A cada palavra, o júri parecia mais convencido de que aquela tragédia foi uma escolha, não uma consequência.

Ao final do julgamento, após horas de deliberação, o veredicto foi anunciado: culpada por homicídio duplamente qualificado por motivo de torpe e mediante recurso que dificultou a defesa da vítima. A sentença: vinte anos de reclusão, sem possibilidade de redução significativa.

Quando a juíza cerrou a audiência, um silêncio pesado tomou conta da sala. A mulher foi escoltada pela polícia, enquanto os poucos presentes no tribunal trocavam olhares de desconforto. Ali, naquele espaço, a justiça parecia ter sido feita, mas não sem um sabor amargo. Afinal, o que restava eram os cacos de uma relação fadada à tragédia desde o início — um amor corroído pela obsessão, pelo ciúme e, finalmente, pela violência.

Epílogo – a reflexão da perícia
O perito, ao armazenar suas anotações e deixar o tribunal, sentiu um peso que não era novidade, mas ainda assim inquietante. Naquele caso, como em tantos outros, a verdade fora encontrada não pelos depoimentos emocionados, mas pelas evidências mudas, pelo julgamento frio e pela análise detalhada. Não houve vencedores, apenas vidas destruídas por escolhas mal feitas e impulsos descontrolados.

Para ele, a geometria do crime não era apenas uma ciência exata, mas uma lição constante sobre as fraquezas humanas. Naquela casa agora vazia, a tragédia não era apenas uma memória, mas um aviso eterno sobre os perigos de permitir que a paixão se transformasse em posse e que a convivência se convertesse em ódio.

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