Ancestrais
Pastor se dá mal ao tentar evangelizar africanos a seu modo
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emO pastor Leopoldo, brasileiro, neopentecostal, desembarcou em terras d’África como um apóstolo disposto a converter os pagãos, um cruzado decidido a decapitar, metaforicamente (que pena, só metaforicamente), os infiéis. Era missionário em Moçambique e foi morar em Maputo, cidade que ele insistia em chamar, pelo menos para si mesmo, de Lourenço Marques.
Não que ele fosse partidário do colonialismo português. Não tinha formação intelectual para se pronunciar a favor ou contra, era uma besta que só conhecia os Evangelhos, e olhe lá. O que o desgostava no nome Maputo era sua origem africana, a lhe recordar a urgência de sua missão evangelizadora.
As belas paisagens de Moçambique não o comoveram. Algumas pareciam as do Brasil. Outras, concluiu, eram ainda mais selvagens. Ansiava por um ambiente urbano, pontilhado de templos neopentecostais, com muitos milhares de convertidos que pagassem o dízimo para si e para a igreja-mãe, no Rio de Janeiro. Mas só pensar nesses fiéis dava-lhe arrepios de repulsa: eram quase todos pretos e pardos, mais do que no Rio de Janeiro, mais do que na Bahia. Ele não era um racista consciente, na verdade era mulato e não tentava passar por “moreno queimado de sol”, como tantos brasileiros empenhados em embranquecer a todo custo; mas votava um solene desprezo ao cristianismo feito nas coxas daqueles… daqueles pagãos!
Desde sua primeira reunião com os líderes da igreja, Leopoldo apresentou seu programa: guerra ao paganismo, tolerância zero com os cristãos de meia tigela, tão verdadeiros quanto uma nota de três reais. Alguns pastores, que estavam há mais tempo em Moçambique, tentaram adverti-lo que ali o buraco era mais embaixo, as divindades conservavam laços familiares que praticamente haviam desaparecido no Brasil.
Eles explicaram ao Savonarola do neopentecostalismo que na Nigéria, no território iorubá, um orixá como Xangô estava ligado à região de Oyó; no Brasil, a dimensão familiar e territorial do culto aos orixás havia se perdido, devido à dispersão dos escravos. Como resultado, Xangô deixou de ser visto como ancestral da família real de Oyó e protetor da população local e foi associado ao fogo, ao trovão e à justiça, sendo pai de cabeça de pessoas de origem afro-brasileira, luso-brasileira, japonesa, alemã e assim por diante. Em Moçambique não; ali havia divindades “nacionais” poderosas, que podiam ser comparadas a orixás, mas predominavam os antepassados que eram reverenciados quase como anjos da guarda e protegiam os membros da família e da etnia a que haviam pertencido, quando vivos.
Leopoldo permaneceu inflexível. E ficou furioso com essa argumentação culturalista.
– Abominação! Vocês se deixaram contaminar pelas crenças locais! O sangue de Jesus tem poder! E eu também tenho, vou mandar vocês de volta pro Brasil, vão pastar até morrer e ir pro inferno!
No dia da primeira pregação de Leopoldo, o templo estava repleto. Todos queriam testemunhar o comportamento do novo pastor, cuja intolerância já se tornara conhecida.
Leopoldo começou a pregar. Babando com o furor dos justos, ameaçou com as chamas do inferno os falsos cristãos, que se repartiam entre crenças animistas e o Evangelho. A multidão permaneceu quieta, na expectativa.
Estranhando o silêncio, o pastor apelou para um espetáculo que sempre comovia multidões no Brasil: a expulsão dos demônios, representados como exus de umbanda, com as mãos viradas para trás. Só que esse código não era partilhado pelos moçambicanos, não conheciam a umbanda, não era assim que visualizavam entidades do mal. E ouvir alguém falar, num sotaque brazuca do Rio de Janeiro que tentava inutilmente passar por moçambicano, que vinha “daish profundash do inferrno” despertou risos na audiência. E o riso, todos sabem, é o melhor antídoto contra tudo tipo de fundamentalismo.
Ouvindo as risadas, cada vez menos discretas, Leopoldo perdeu o controle, chutou o pau da barrava e investiu contra o poderoso deus Mundao, reverenciado entre os machanganas, os machopes, por toda a gente de Moçambique.
– … E os pagãos daqui adoram um demônio chamado Mundao. Dá o quê? Cês imaginam, né? … Dá pros machos dele, lá no inferno!
A multidão deixou de rir. Não era uma blasfêmia porque, formalmente, eram todos cristãos dentro do templo. Era mais que isso, uma agressão injustificada, imerecida, contra uma divindade protetora do povo moçambicano. Uma entidade poderosa, cujo nome não podia ser pronunciado levianamente, e que não estava ali para se defender.
Só que estava. Mundao assistia ao culto, morrendo de rir. E ainda mais porque, ironia das ironias, Leopoldo descendia de um guerreiro machangana levado pro Brasil como escravo.
– Esse machanganazinho extrapolou – comentou o deus para Mungoni, outra divindade venerada em todo o país. – Vai aprender a me respeitar e a todos os seus ancestrais.
– Isso, castigai-o! – encorajou Mungoni.
No momento seguinte Leopoldo parou de falar e tremeu nas bases. Ao retomar o discurso, exprimiu-se em machangana castiço:
– Meus irmãos moçambicanos, peço-vos perdão! Ofendi, por ignorância, os grandes deuses protetores de meus ancestrais. Mais ainda, chamei de demônios meus antepassados diretos, que zelam por minha família. Isso é imperdoável, imploro que os machaganas presentes venham até aqui e me castiguem!
Uns cinco machanganas recém-convertidos obedeceram, subiram ao palco e cobriram o pastor de porrada. Os seguranças, ultrajados pelas ofensas gratuitas ao deus Mundao, não fizeram o mínimo esforço para impedir a surra.
Houve desdobramentos, claro. O pastor Leopoldo voltou ao Brasil, estava totalmente desmoralizado, impossibilitado de empreender qualquer atividade missionária. Os pastores que defendiam uma evangelização mais cautelosa, baseada no respeito às entidades espirituais locais, sentiram-se vitoriosos. Mas seu triunfo teve curta duração.
Logo começou a desembarcar, em terras d’África, uma nova leva de pastores neopentecostais, todos ardendo com o zelo da missão apostólica, cruzados dispostos a decapitar, metaforicamente (que pena, só metaforicamente, os infiéis. Têm a intolerância do pastor Leopoldo, mas nomes bem diferentes. Chamam-se Toshiro, Karl, Giuseppe, Ivan, não há um luso-brasileiro entre eles, e muito menos afro-brasileiro. E todos recordam, com desconforto, a última pergunta do interrogatório em que foram aprovados como mensageiros da Palavra no além-mar.
– Tudo bem, seu Toshiro (ou Giuseppe, ou Karl, ou Ivan). Só umas coisinhas. Tem CERTEZA de que nunca frequentou candomblé ou terreiro de umbanda? Não é filho de cabeça de Oxalá, Xangô, Ogum, Oxóssi ou algum outro orixá? E nem – baixou a voz, apreensivo, passarinho que come pedra sabe o que pode lhe advir – de Mundao ou Mungoni? Já ouviu falar neles? Não? Ótimo. Uma última questão: a senhora sua mãe, ou avó, ou bisavó, não deu pra nenhum africano ou brasileiro de origem africana? Nem mesmo para um luso-brasileiro moreno, queimado de sol?