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Cornucópia

Deixar-se trair uma vez, tudo bem… mas, mesmo após a morte?

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Autor/Imagem:
Gil DePaula - Foto Produção Francisco Filipino

Era a terceira vez. Era a terceira vez, mas, de alguma forma, ainda doía. Da primeira, bem me lembro. E como esquecer? Me casei aos vinte anos. E que merda! Quando você se casa aos vinte anos, aos quarenta fica se perguntando sobre as farras que deixou de fazer, das viagens não desfrutadas com a turma, das mulheres que deixou de amar, da liberdade restrita e vigiada e de quantas peladas perdeu. Imagine aos cinquenta! Aos cinquenta, desejamos que as cores com que pintamos o quadro do nosso passado sejam surreais.

Seria nosso segundo encontro, e confesso que gostei do primeiro. Combinamos o encontro na porta do cinema no shopping. Até comprei uma camisa nova. Não gosto de filmes melosos, mas deixaria que ela escolhesse. Aqueles olhos verdes valiam qualquer sacrifício.

Nunca fiz muito sucesso com as mulheres. A morena, trigueira, de longos cabelos, me olhava. Algo estava mudando. Quando ela me perguntou se eu era o Márcio, fiquei pensando de onde eu a conhecia. “Jéssica não vem, Márcio!”, e, sem nenhuma cerimônia, ela pediu para despachá-lo. Minha reação apatetada lhe despertou algum instinto maternal. “Mas posso tomar um refri com você.”

Casamos, tivemos dois filhos, bonitos e morenos como ela.

No começo, Aline (sempre achei que o nome combinava melhor com as loiras) não percebia, ou fingia não perceber, as minhas pequenas infidelidades. No primeiro ano até que me comportei. Mas nos outros… E ela lá: filhos, roupas, louças, ingênua e fiel. Fidelidade que eu arrotava abertamente para os amigos, complementando: “Macho! Macho mesmo não engole chifres.”

Primeiro foi o emprego. “Tô cansada de cuidar da casa. É louça, roupa e cozinha. Vou trabalhar.” Depois, o telefone que tocava e se fazia mudo. Até soltei uns palavrões. E Aline, que sempre foi um pouquinho desleixada, emagreceu, caprichava mais no batom, se vestia melhor. E dizia: “É pra você, meu amor, pra que tenha orgulho de mim.”

No dia em que completávamos quinze anos de casados, o telefone tocou, e a voz do outro lado, antes que eu desfilasse oralmente a riqueza do meu glossário de obscenidades, disse: “Seu Márcio, sua mulher está lhe traindo, e eu tenho a prova.” Eram duas cartas: uma escrita por Aline e outra pelo marido da dona da voz.

Diante do pesadelo, confrontei, insultei, levantei a mão. Quando ela disse que ia embora, doeu mais a possibilidade do abandono do que a traição. Implorei para que ficasse. Estava perdoada. Uma semana depois, se foi, nem dos filhos quis saber.

Dois anos após, eu estava novamente casado. Casado de papel e tudo. E, como Euclides e Tolstói, eu também tive a minha Ana. Não era Karenina nem de Assis; era Maria. Conheci Ana Maria por causa de um amigo: “Você precisa conhecer a Aninha. É um doce de pessoa, séria, bonita, mas séria. É a mulher pra você. E outra coisa: só tem vinte e cinco anos.” Adoçava a boca do quase quarentão.

Tornamo-nos inseparáveis: eu, Ana, Beto e Andrea. Frequentávamos as casas um do outro, íamos para as mesmas festas, viajávamos juntos e jogávamos na mesma pelada da quarta-feira (eu e o Beto).

Ana estava sempre bonita, alegre, feliz. Carinhosa, gostava de se aconchegar ao meu peito. Passava as mãos em meus cabelos. Exigia o troco. Um dia, minguou. Deixou de ser satélite de raios luminosos em noites escuras. Acabrunhada, mal falava, triste, impaciente (Andrea justificava: “São os hormônios. Mulher é de fases”). Confessou: “Não aguento mais. Sempre fui apaixonada pelo Beto. Somos amantes. Quero o divórcio!” Desta vez, mostro dignidade. As Anas não fogem ao seu destino.

Conheci Bella na Itália. Em Roma. Nos portões do Vaticano. Isabella Romanini. Quando lhe pedi uma informação, recebi de presente um sorriso e a pergunta que afirmava: “Você é brasileiro?! Adoro os brasileiros.” Isabella. Como os sufixos, às vezes, são tão apropriados. Apaixonamo-nos. Voltei para o Brasil. Tornei à Itália. Retornei para o Brasil. E Bella foi apresentada ao Corcovado do Cristo acolhedor, às praias do fio dental, aos mangues de Sergipe, ao Pelourinho da Bahia, ao frevo de Olinda e até ao Palácio do Planalto.

Quatro anos se passam. Quatro anos, quando felizes, deixam Hermes* orgulhoso. Bella agora quer aliança no dedo. Quer festa de casório. Quer cerimônia. Pensa na gravidez. Trigêmeos. É terra fértil. É bela cornucópia*.

Trinta e dois convidados. Um pastor. Um pequeno buffet. Uma cerimônia íntima. “Aceita essa mulher para honrá-la?” “Aceito.” Suor, falta de ar, a dor forte, contundente. Levo a mão ao peito. Era a terceira vez que me casava. Olho para minha bela Bella e concordo com a indignação rodrigueana: traição pior que a da mulher viúva não existe, pois trai o marido morto. Assertivamente, como as Anas, nem depois da morte fugirei do meu destino.

E a dor…

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