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Miguel e Magrão

Baiano, escritor, servidor, não viu sua obra viver para o mundo

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Magrão não era Atena, mas chegava junto. Ela surgira da cabeça de Zeus, o deus dos deuses da Grécia; ele surgira da cabeça de Miguel, escritor bissexto na capital baiana. Ela era fruto de uma insuportável dor de cabeça de Zeus; ele, de um porre monumental de Miguel. Atena despontara portando couraça, espada, lança e escudo, equipada para o combate; Magrão despontara em roupa de briga – terno barato amassado e camisa de colarinho sujo e mangas puídas, usado por amplos setores da classe média pobre do Brasil –, não por acaso igualzinha ao de Miguel. A história de Atena e Zeus é bem conhecida, a de Magrão e Miguel nem tanto. Por isso, escrevo este conto.

Miguel era escritor. A rigor, não era, trabalhava na Prefeitura de Salvador. Ganhava pouco e se esforçava menos ainda. Não tinha mulher nem filhos, e com o ordenado conseguia pagar um quarto de pensão, emborcar suas cervejinhas e doses de cachaça e, sobretudo, comprar seus adorados livros nos sebos da cidade. Ele amava livros, gostava de sentir a textura do papel, de acariciá-los… Leitor exigente, desdenhava romances de aventuras e outros campeões de vendas; passava horas debruçado sobre os clássicos, saboreando um livro de Tolstoi, Balzac, Zola ou Guimarães Rosa e babando de felicidade.

Quando não estava lendo no quarto ou bebendo em algum botequim, Miguel escrevia. Já havia publicado contos e poemas em suplementos literários locais e alguns o consideravam talentoso. Por isso dizia-se escritor, e não, argh, servidor público municipal.

Certa noite, enquanto bebia a sua cachacinha, Miguel imaginou um personagem novo, Magrão. Seria uma espécie de filósofo das ruas da cidade da Bahia, vivendo de bicos, com pouquíssimo dinheiro no bolso, mas feliz, dedicado à leitura e à escrita. Ou seja, a cara de Miguel. Entusiasmado, foi pra casa e escreveu de uma tacada quatro episódios da saga de Magrão. Eram histórias curtas, cenas do cotidiano da gente da Bahia, povoados de personagens secundários fascinantes, de nomes estranhos. Miguel nem dormiu, ficou conversando horas seguidas com Magrão e alguns coadjuvantes recém-criados.

Naquele dia, ficou menos de 3 horas na repartição. Alegou doença, como fazia pelo menos uma vez por semana, e saiu para apresentar Magrão aos editores de suplementos literários. No caminho, conversava em voz alta com a cria. As pessoas notavam mas se limitavam a sorrir, o baiano é um vivente sofisticado, que convive numa boa com encantados e santos manifestados em seus burros…

Para enfrentar uma possível rejeição – é sempre duro depender do sim ou não dos editores, feras impiedosas todos eles –, Miguel entrou num botequim para virar uma cachaça, não tinha tempo para uma gelada. Pediu duas, uma para Magrão, com quem conversava. Os bebuns de plantão acharam normalíssimo, afinal, alcoólatras que bebem na companhia de lagartos cor de rosa não se espantam com tão pouco… Cem metros adiante, outro botequim, a mesma coisa. E um terceiro… Magrão não bebia (não tinha como, coitado), Miguel bebia em dobro. O resultado é que já estava bêbado quando enfrentou sua primeira fera.

– Genial, adorei! – disse o editor. E fez a pergunta que Miguel temia:

– Quantos contos vão ser?

– Não faço a mínima ideia! – respondeu o escritor bebaço. E inflamou-se:

– Tão numerosos quanto os grãos de areia, quanto as dores e alegrias da gente pobre da Bahia, quanto..

– Então não vai dar – cortou a fera. – Publicaria uns dez, vinte, mas não uma obra que pode não acabar nunca – e, alardeando seus conhecimentos literários, concluiu:

– Não sou Scherazade para brincar de Mil e Uma Noites!

Cambaleando de rejeição e de pinga, Miguel foi enfrentar as demais feras. Em todas as redações a cena se repetiu: entusiasmo inicial e negativa final, nenhum editor queria se comprometer com uma obra tão extensa quanto as dores e alegrias da gente pobre da Bahia.

Arrasado, depois de ouvir o último não, Miguel comprou uma garrafa de cachaça e foi para casa. Enquanto bebia, conversava com Magrão:

– São uns incompetentes, cara! Estás vivo, cara, és o meu melhor personagem, fecho os olhos e vejo tuas feições. Te amo, cara! – E, chorando de cachaça e autopiedade, desmaiou na cama.

Não se sabe em que momento ocorreu a materialização. Ou se foi por compaixão ou maldade que os deuses fizeram de Miguel um novo Pigmalião e deram vida a sua criatura, Magrão-Galacteu. Seja como for, quando Miguel acordou, com uma ressaca infernal, deparou-se com um homem num terno amassado e camisa de colarinho sujo e mangas puídas, com as feições com que sempre via Magrão. O galacteu baiano olhou para o pigmalião soteropolitano por um longo tempo, em silêncio, e finalmente falou:

– Bom dia, papai.

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