Otávio e Otávia
Olhos castanhos, sem vida, olhavam para o vazio do teto esperando a polícia
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em“Teus olhos castanhos de encantos tamanhos são pecados meus…”. Os versos da canção portuguesa embaralham meus pensamentos, impedindo-me de evocar-te, de rememorar nossa história. Eles vêm atraídos por teus olhos castanhos, mas desviam o foco, atrapalham. Em desespero, tento criar um contrafogo e murmuro os versos finais do tango Los mareados: “Qué grande há sido nuestro amor/ Y sin embargo, hay!/ Mirá lo que quedó”. Sabia dos riscos, o tango portenho e a balada portuguesa poderiam tabelar no ataque e arrasar minhas defesas mentais, mas por sorte um neutralizou o outro, abrindo-me um espaço para pensar em ti.
Ah, moça dos lindos olhos castanhos, como foi grande o nosso amor. E não sobrou nada…
Lembro como tudo começou, na festa em que um amigo em comum nos apresentou.
– Muito prazer, Otávia.
– Muito prazer, Otávio.
Recordo as sobrancelhas arqueadas, devido à similitude dos nomes; seria um presságio? E os sorrisos apenas esboçados, mas já com pitadas de erotismo. E nossa conversa interminável, que excluiu os amigos e trouxe à superfície mil cumplicidades. E como, a certa altura, passamos a nos beijar. Para irmos embora pouco depois, os dois dando choques de tesão. Teu apartamento ficava mais perto, logo depois da esquina. Subimos, abriste a porta, fomos para o quarto, nos jogamos na cama, transamos a noite inteira, e me apaixonei, e te apaixonaste. Simples assim.
Foram três meses de paraíso na terra, ou na cama. No início desse período, bebi pouquíssimo. E com poucos drinques nos cornos sou brilhante, divertido, a alegria da festa. Mas o tempo passa, a vontade vai laceando, e aos poucos voltei ao meu normal, a enfiar o pé na jaca.
Contei que com duas ou três doses fico alegre; vou em frente, viro um bêbado chorão; continuo, me torno soturno; no último estágio, fico mau. Era nessa fase que em geral terminavam nossas noites, contigo a meu lado, tentando inutilmente me conter. Os amigos procuravam justificar, falando em ciúme, mas eu sabia que isso não passava de um pretexto. Na verdade, gostava quando um imbecil qualquer olhava para ti, dava-me ocasião de crescer para cima dele, intimidá-lo. Raras vezes ia brigar na rua, onde o cara levava uma surra; na maior parte dos casos, bastavam algumas ofensas e minha presença de macho alfa, para o ex-quase-futuro paquerador encolher os chifres, murmurar desculpas, pagar a conta e ir embora do barzinho. Eu ficava triunfante, mais um rival destroçado; quanto a ti, olhavas-me com laivos de censura e tristeza em teus lindos olhos castanhos.
Então, certa noite, um homem qualquer olhou-te e sorriu para ti. Levantei-me furioso e corri para cima dele:
– E então, otário? Nunca viu uma mulher gostosa?
Foi tudo o que eu disse, tudo o que fiz. Não houve a habitual troca de ofensas, não cresci para cima dele. Deu-me um gancho no queixo, um só, e desabei. Ao recuperar os sentidos, uns cinco minutos depois, eras a única pessoa a meu lado. Os amigos haviam ido embora, talvez aturdidos pela rapidez de minha derrota.
Fomos para casa – o teu apartamento, onde vivíamos havia três meses. Depois, já no quarto me olhaste com teus lindos olhos, subitamente gelados, e disseste:
– Chega de bebida. Mais uma dose, uma só, e nos separamos.
Era humilhação demais. Apanhar numa briga e, depois, receber um ultimatum de minha mulher?
– Ninguém me dá ordens! – rosnei.
E bati. Bati com raiva, como não havia conseguido fazer contra o don juan do barzinho. Soquei de tirar sangue, de fazer perder os sentidos, e continuei. Quando um pouco de sanidade retornou, jazias no chão, o rosto desfigurado, teus olhos castanhos fixos no teto, sem nada ver.
Cito agora a balada: “Teus olhos castanhos são pecados meus…”. Meu pecado estava sem vida, a meus pés. Dizem que Deus perdoa todo e qualquer pecado. Só que não acredito em Deus.
Sentado na sala, um copo de uísque na mão, espero a chegada da polícia, passo inicial da justiça dos homens.