Curta nossa página


Não sei nadar...

Coletânea de cânticos para viajantes e marujos espaciais

Publicado

Autor/Imagem:
Gilberto Motta - Texto e imagem

1.
Durante anos perdi o hábito de escrever ou dizer das águas que um dia correram em mim. Como se a nascente fosse eterna e jamais secasse. Agora regresso -não a essas- mas a outras águas, suas parentes e mais fundas. Sigo fluindo na corrente lenta ao sabor do instante e nenhuma promessa. Eu não sei nadar.

2.
São espessas de mágoas, alegrias, breves superações e algumas perdidas transparências. Há também algumas tentativas de superações. Perdidas transparências. Se as saboreio, encontro muito mais que antigas emoções: da chuva fina naquela manhã fria caindo sobre a terra, as ilhas que não descobri e os mundos que -por medo ou ira tola afundei para sempre feito Atlântidas a espera de marujos fanáticos, fiéis adoradores de endemoniadas sereias. Como já disse, eu não sei nadar.

3.
1969. O Homem chegou à Lua. Todas as sensações e esperanças que tive de espremer com mãos trêmulas de alcoólico cirurgião. Cego, à luz de velas, escondido nos porões dos meus navios fantasmas, sonho pesadelos de monstros e algas marinhas. A Lua flutuando com um minúsculo pontinho (a nave Eagle) pousado nela; o módulo Colúmbia orbitando o satélite e dentro dele um marujo solitário feito a criança que a tudo observa. Navegando mares da solidão. “Poetas, seresteiros, namorados, correi…”. Mares lunares. E eu continuo sem saber nadar.

4.
O tempo constrói narrativas dispersas. Tudo vira apenas interpretações. E, no entanto, sentado como tantos outros anteriores à mim, sigo à beira de um rio triste que corre num só sentido da história. O mar bravio, a Lua, deixaram de ser a meta, o desafio. Calado, presto atenção em tudo que é coisa, viva ou morta, seres de sentidos ou inanimados. Para algum sentido devem servir os desafios, as jornadas. Para alguma construção de inocente transformação ainda desprotegida e que nunca se perdeu, ainda vale a esperança. Lá fora o vento sopra e tudo dança. E eu sigo morrendo de medo sem saber nadar.

5.
Caminho pelo mundo inverso da casa/luz que se habita. Zingro mares. O mesmo menino aturdido e alucinado pela corrida espacial. Violências de silêncios e chumbo, marujo de choros anacrônicos e zumbidos de enxames de abelhas exploradas na caixa de mel. Conquistas perdidas para sempre. Sigamos assim: insetos zumbidores tateando o vidro sujo da janela. Nem boiar eu aprendi.

6.
Anoitece na ilha dos peixes ao sol. Cai o breu e na praia só vejo o lusco-fusco das luzes delirantes das pombocas que serpenteiam feito procissão fanática. Ciclone transformador de ideias e sonhos, no exato instante em que a revolução tardia investe contra o muro tênue da minha própria história. Um navio desbravador dos mares a serem conquistados teima em voar por sobre a cidade, as nuvens, o universo infinito. Um dia aprenderei a nadar?

7.
2020. Nas lembranças, sobram apenas o tempo concreto das ampulhetas, as fotos amareladas, o gosto de sal e de mar e a construção das histórias que as minhas narrativas cheias de humor nervoso jamais contarão. Sigo marujo desterrado, um marujo que não sabe nadar. Os vencedores reinventarão narrativas e o tempo será outro; os mares bravios e a Lua dos poetas, seresteiros e dos namorados, talvez já não estejam mais lá. Mas a esperança – e o riso seco, neurótico -, sim, permanecerá. Espanto, defesa e revolta. “Um pequeno passo para o homem…”. Morri afogado ao final do sétimo dia do grande dilúvio.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.