Beijo no asfalto
Falso astro do fuck you amansa o leão e escapa de ser vítima da castração
Publicado
emHá coisas na vida que a gente não explica. Algumas nem Freud parou um dia para pensar sobre elas. Passei anos namorando com os olhos aquela reluzente e coloridíssima lata cilíndrica de biscoitos acomodada sobre a máquina de costura de minha mãe. Sonhava com uma das rosquinhas, mas nunca me atrevi a mexer no que supunha ser o lanchinho diário de dona Guigui. Hiperbolicamente, quase morri de desgosto ao descobrir que ali só havia agulhas, linhas, botões, alfinetes, dedais, sianinhas e demais babilaques utilizados por uma costureira. Jamais perguntei, mas ainda hoje acho que naquela lata, se um dia teve algum biscoito, não foi para o meu bico.
Pobre, mas feliz e sem medo da pobrice, nasci e me criei beijando o asfalto, mas bem próximo da comunidade do Barbantinho Cheiroso, vizinha dos ajuntamentos Mané Pelado e Calça Arriada. Cresci no meio de uma rapaziada de responsa. Como migo, poucos dessas comunas conseguiram comer biscoitos recheados enquanto criança. Respeitado e admirado, logo passei a ser conhecido como Professor e, na sequência, por Wenceslau CB. Quase virei samba enredo da escola carnavalesca local quando descobriram que eu era temporão de 11 meses e meio.
Antes de continuar com a saga, devo aos leitores e eleitores uma brevíssima explicação. Na verdade, duas. Wenceslau CB era como me definiam por escrito. Na viva voz, a pronúncia queria – e quer – dizer tão somente Wenceslau Sangue Bom. A variação fonética esteve e está por conta da mania do povo sem tempo em abreviar determinadas palavras e expressões. Mudam inclusive o som. Quanto ao termo Professor, soube já rapaz que a motivação foi a conclusão do pré-primário em três anos e meio. Me orgulho de ter sido rápido no aprendizado. Tenho amigos de infância que até hoje tentam se formar. Outros se mantém muito bem empregados na estiva, na padaria, na funerária ou no circo mambembe dos irmãos espanhóis Ramiro e Manolo, localizado na subida do Mané Pelado.
Por falta de apoio logístico e da milícia local, o Estado e o Município já tentaram de tudo, mas não conseguem tirar a envelhecida lona do local de origem: um brejo apinhado de sapos, rãs e algumas cobras. Importante dizer que o picadeiro do circo serviu de altar para vários casamentos na região, a maioria deles no sistema comunitário. Dizem os mais velhos que vem daí aquele velho ditado informando que malandro é o sapo que casa e leva a mulher para o brejo. A história era minha, mas, como todo final feliz tem de ter uma graça, lembro que o primeiro leão que vi na vida era o bichano de estimação do Manolo. Velho e desdentado como o dono, o bicho às vezes assustava a rapaziada.
Em um dia de casa cheia, algo como 17 pagantes e 143 bicões, entre eles um cidadão com deformidade física, o leão fugiu da jaula sem trinco e partiu no rumo da plateia. Me recordo de ter ouvido alguém gritar repetidas vezes “olha o aleijado, olha o aleijado”. Já do lado de fora, ouvi um sujeito, desesperado e manquitolando a menos de dez km por hora, gritar a plenos pulmões: “Porra, calem a boca. Deixem o leão escolher”. Mostrei a picanha e consegui amansar a fera. Sou depois que o bichano foi expulso da arena sem aviso prévio. Em decorrência de uma denúncia de propaganda enganosa advinda da Calça Arriada, o circo foi fechado por duas semanas pelo Procon da época. Épico, anômalo, atípico e inabitual, o motivo se mantém na meiuca da expectativa e da realidade. Folclore ou fato, o acontecido será eternamente lembrado pelos remanescentes das três comunidades.
Sem o conhecimento de Manolo, Ramiro anunciou a grande atração da noite: um Sex Symbol do bairro vizinho, contratado para dar mil funhanhadas ao vivo e em cores no meio do picadeiro. Casa lotada, começa o fuck you público. Meia hora de show e o camarada, após completar 999 raquetadas, cai duro no palco. Composta majoritariamente por senhoras recatadas e do lar, a plateia não perdoou: “Bicha, bicha, bicha”. O artista sequer teve tempo de informar ao respeitável público que, 15 minutos antes do início do espetáculo, o ensaio fora uma perfeição. Por via das dúvidas e obviamente com pavor de ser circuncidado a frio ou castrado no toco, desapareci das comunidades sem atingir os píncaros da glória. Era eu o astro enganador. Consegui me livrar, mas mantenho o medo de encontrar uma das fãs revoltadas. Mudei de ramo. Hoje sou dono de sauna. Ganho dinheiro com o suor dos outros. Ramiro e Manolo dormem o sono dos justos. Do circo restam apenas histórias que só serão contadas quando eu der o último beijo no asfalto.
………………………….
*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras