Javalis radioativos
“Assim eu vivi / A História se faz / pandemônios venci / assim eu ouvi”
Publicado
em“Vão agora, lancem sobre a Terra as sete taças com a ira divina”. (Apocalipse, João 16,1)
1.
A noite trouxe mais dúvidas. Dormir ou ficar atenta aos barulhos e movimentos lá fora? Sobreviver. Pela manhã, um ano após o terrível tsunami e a pandemia que se seguiu, a velha monja de alma pura e corpo
marcado pela vida de monja e treinamentos radicais, repetira o mesmo ritual: levar os cães -também velhinhos- para as necessidades primárias no imenso gramado do mosteiro; fumar um cigarro de folhas de erva-doce e observar – por horas -, o grande sino dourado. No centro do majestoso átrio central, brilhando ao Sol e a Lua, lá permanecia intacto o sino sagrado. Assim se deixar ficar. Meditando até perder toda a noção do tempo e entoando o mantra da Esperança:
“Paz e tudo de bom / Paz e nada de mal
Paz e vida que flui / Paz e tempo fatal”
2.
Os olhos apertadinhos da monja enxergavam o mundo em uma órbita de 360 graus. Sabia dos perigos pós tsunami com as pestes e a radiação. Naomi vinha de uma família de antigos pescadores onde as tradições cristãs trazidas pelos portugueses, marcariam a sua infância. Apesar disto, Naomi seguiu por outros caminhos, sagrando-se monja no mosteiro do norte. Todos os dias, agora, o carro de som do governo passaria alertando sobre o terror que rondava a região:
ATENÇÃO MORADORES… PERIGO: ELES ESTÃO POR TODA PARTE… NÃO PROVOQUE… CUIDADO… ATENÇÃO… OS JAVALIS RADIOATIVOS ESTÃO SOLTOS… PERIGO…. PERIGO… FIQUE EM CASA!
3.
Naomi, a mulher guerreira, lembrou-se dos tempos dos grupos de defesa coletiva de sua pequena aldeia. Os homens tomavam a linha de frente e as mulheres organizavam a família, as provisões de comida e os remédios para os feridos. Mas agora, um ano após o tsunami e o desastre total, a lei seria “cada um por si e todos contra o pandemônio”. O primeiro javali, esfomeado pela falta de alimento, invadiu a usina atingida pelas ondas do maremoto e foi infectado pela radiação que vazara do núcleo atômico. Bicho feroz por natureza e de rápida reprodução. Bicho demônio, agora vagando pelas estradas e vilas, em busca de alimento e posse de territórios. Sem controle. A vida chegara ao limite.
4.
Em seus exercícios de meditação, a monja refletia à exaustão sobre o verdadeiro significado dos javalis radioativos e do vírus. Seria castigo? Pragas como as descritas por João? Ou apenas pedras colocadas
em nossos caminhos para testes e desafios a serem transpostos, como iluminou Gotama, o Buda. O fato é que, com eles, chegara-se ao desastre quase final. A natureza reagindo ao desafio do homem. Os javalis foram se reproduzindo e infestando e atacando e matando e não descansariam até que o terror estivesse sacramentado naquelas terras. O domínio do vírus total.
5.
Naquela noite, a monja dormiu “com um olho aberto”, mas sonhou que alguém batia à porta. Era o javali Alfa radioativo, que falava aos gritos e exigia comida para ele e os seus. Naomi recebeu o invasor com
postura ereta e, com a voz firme, uníssona, entoou o mantra do Respeito:
“Não grita na cara / Não caga na sala / Não baba e não rosna /Sossega e acalma” “Não grita na cara / Não caga na sala / Não baba e não rosna /Sossega e acalma”
Diante do ataque iminente, a monja foi direto ao ponto:
– O que tu queres, Cão?
Espumando, o javali radioativo bradou:
– Tua alma, a aldeia e o teu país; depois o planeta!
Sem qualquer expressão no rosto, nos gestos ou na alma, Naomi olhou no fundo dos olhos da besta e com voz retirada do fundo da alma disse: – Javalis radioativos não têm olhos, nem corações, nem almas, nem
pulsões…Fora! Fora daqui!
6.
Na manhã seguinte, a monja reestudou os seus planos. Evacuar ou não a pequena aldeia? Os javalis radioativos já estavam por toda parte. O perigo e a morte rondavam; o cheiro de enxofre permanecia no ar desde o grande tsunami. Ela abriu a janela e ainda pode atentar o olhar para as pesadas nuvens poluídas e em movimento, carregadas de energia e escuras feito o breu. Foi até ao átrio central e cortou a corda que o mantinha o sino no alto do campanário. O sino espatifou-se no chão com um som surdo, de morte. Preságios. Depois, com movimentos lentos e decididos, a monja deu uma dose de um suave e antigo veneno para cada um dos cinco cães, companheiros de estimação, para que pudessem finalizar a jornada sem dor nem sofrimento.
7.
Deixou o mosteiro sem se despedir, pois era a última que ficara para trás. Desceu até a vila, entrou na casa, a mesma casa de seus avós e de seus pais, e observou cada detalhe, cada objeto. Lembrou – por instantes -, histórias de seus pais e avós, emoções e sentimentos que também dos objetos emanavam. Ali, Naomi pode passar à limpo a sua infância e adolescência. Memória:
“Assim eu vivi / A História se faz / pandemônios venci / assim eu ouvi” “Assim eu vivi / A História se faz / pandemônios venci / assim eu ouvi”
Ao final do ritual, a monja fechou a porta e jogou a chave fora. Ajeitou na cintura do quimono negro a espada de samurai que fora de seu bisavô e, com um balde de ração numa das mãos, caminhou decididamente em direção à malhada de javalis.
Teria ainda que alimentar o javali Alfa radioativo, antes do confronto final.