Toplessaço chama musas e gera debate sobre a beleza
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emA apresentação das musas do ‘Toplessaço’ em Ipanema, no Rio, programada para esta terça-feira 20, voltará a chamar atenção para a causa do topless – prática ainda tabu nas areias brasileiras, embora considerada corriqueira em muitas praias europeias.
Escolhidas no fim do ano passado, as duas musas do chamado ‘Toplessaço 2’, que busca promover a prática na cidade, receberão suas faixas no dia de São Sebastião, padroeiro do Rio. A festa é para apresentar as vencedoras “em carne e osso”, como informa o site Topless in Rio.
Mas o formato de concurso de beleza para defender a liberação do topless desperta críticas. Para muitos, é uma distorção da ideia de que a prática deve ser vista como natural, e não associada à beleza ou sensualidade.
O evento é um desdobramento do primeiro Toplessaço, uma manifestação convocada em dezembro de 2013. Oito mil mulheres haviam aderido à ideia de ir à praia topless em Ipanema para defender a naturalização da prática.
Mas o resultado foi um fiasco, com a presença maciça da imprensa e uma multidão de homens querendo ‘ver peitinho’ – inibindo qualquer pretensão à naturalidade.
De lá para cá, nada mudou nas areias cariocas. Mas no exterior, o debate sobre o topless, a liberdade do corpo feminino e o peso de padrões estéticos vem aumentando, provocado por movimentos como o ‘Free the nipple’ (Liberte o mamilo) – que defende o direito de mulheres manterem o torso nu em lugares públicos – e páginas nas redes sociais onde essa liberdade é exercitada.
Há, por exemplo, um perfil no Instagram em que usuárias compartilham suas fotos com os seios de fora em paisagens do mundo todo, de costas para a câmera.
O Toplessaço 2 traz a causa à tona novamente, mas não é bem uma segunda edição da primeira manifestação. Organizadoras e filosofias são diferentes.
A atriz e ativista Ana Rios, organizadora do movimento original, não tem vínculo com o novo Toplessaço, mas acha que o concurso para eleger uma musa “desconfigura completamente” a ideia original. “Acho uma pena, porque tudo que a gente queria era ajudar a construir uma sociedade em que o corpo pudesse ser mais livre. Um movimento coletivo, em que todas as mulheres pudessem se sentir bem”, explica. “Um concurso é o oposto disso. É uma forma de voltar a determinar padrões, determinar que alguém é melhor, mais bonito, mais interessante, e alimentar essa eterna disputa em que vivemos.”
A antropóloga Mirian Goldenberg enxerga no modelo atual uma contradição típica da cultura do corpo feminino carioca. Ela evoca o conceito do “equilíbrio de antagonismos” usado pelo sociólogo Gilberto Freyre. “Ter uma musa do topless é um equilíbrio de contradições. É querer juntar duas coisas opostas: ter liberdade com o próprio corpo e ao mesmo tempo ser a mulher mais sexy do planeta”, diz Mirian, professora do Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora dos livros O corpo como capital e Nu e vestido – dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca .
Mirian diz que a ideia do topless é prejudicada no Brasil, porque não necessariamente corresponde à libertação idealizada.
Como conciliar os ideais de descontração e conforto com o próprio corpo com a forte imposição de padrões de beleza entranhados na cultura brasileira? “O problema é que a mulher brasileira é prisioneira do próprio corpo. Não conseguiu se libertar desse ideal de ser magra, sarada, jovem, gostosa. Mesmo sendo intelectual, quer ser sexy até morrer – ou até ficar bem velha”, diz Mirian. “Então o topless é visto como outra forma de exibir sexualmente o corpo.”
Organizadora do evento atual, a produtora e jornalista Ana Paula Nogueira defende a eleição das musas como uma forma de inspirar outras mulheres.
Ela enfatiza o fato de ter sido aberto a “qualquer tipo de mulher” e que os quesitos não eram apenas beleza, mas também ter atitude e “peito” para encarar a vida. “Naquele primeiro evento, percebemos que havia muito preconceito em relação ao topless. A discussão de repente se voltou para os tipos femininos, sobre quem teria direito de fazer o topless ou não, e quisemos fazer esse concurso para quebrar os estereótipos de beleza”, argumenta.
Em 2013, Ana Paula participou e acabou virando o rosto do Toplessaço. Encarou de topless o circo midiático que se formou na praia e logo estava cercada de fotógrafos, cinegrafistas e repórteres.
De lá para cá, participou de ensaios fotográficos sensuais, criou o site Topless in Rio e dá prosseguimento à causa à sua maneira, ainda usando o nome Toplessaço, embora confirme que a proposta seja “totalmente diferente”. “Queremos democratizar a praia. Na visão romântica, é um lugar aberto para as diferenças, desencanado, mas na prática você só é bem aceito se tem um corpo malhado. Tem toda uma ditadura da praia no Rio e quisemos dar uma sacodida”, diz.
As fotos de divulgação do evento, bem produzidas e tiradas por fotógrafos de moda, mostram a antiga e as novas musas posando na areia.
Cerca de 50 mulheres se inscreveram no concurso, e as eleitas foram Karla Clemente, bailarina e atriz; e Natache Iamaya, que é cadeirante devido a uma doença degenerativa – e vem trazendo visibilidade para a questão da falta de acessibilidade para deficientes físicos na praia.
A escolha foi feita por voto popular e por um júri composto por nomes como o cantor Otto, o fotógrafo Marcelo Faustini e o dono da agência 40 Graus Models, Sérgio Mattos.
Mattos acha que as musas podem inspirar outras mulheres a serem mais confiantes de seus corpos. “Achei superválida a proposta”, diz Mattos. “A cultura brasileira tem essa coisa muito hipócrita. As mulheres estão quase nuas, usam fio dental, mas chega na hora de mostrar o seio e tem esse preconceito. O brasileiro está acostumado a ver bunda, não tem problema. Peito não, acha exótico. Já está na hora de as pessoas amadurecerem para quebrar esses tabus.”
Mas em lugares onde o topless é uma prática comum, como a Espanha ou a França, essa exposição não é associada à sexualidade, diz Mirian Goldenberg. “Mulheres de 60, 70 anos fazem topless e ninguém olha. Tem a ver com liberdade com o próprio corpo.”
Ela conta já ter ouvido depoimentos de muitas estrangeiras que ficaram constrangidas ao tentar fazer topless aqui por terem se sentido olhadas como objeto sexual, algo que não aconteceria em seus países de origem.
Esse olhar, em grande parte, inviabilizou o Toplessaço em 2013. Ana Rios, organizadora do primeiro evento, não esquece a decepção. “Foi muito violento o que aconteceu. A gente falando de como fazer o corpo não ser visto como objeto, e de repente uma quantidade assombrosa de homens ali para ver peitos, com cara de babão.”
Em contraposição à ideia das musas do Toplessaço, ela preferiu aderir a um outro movimento: o ‘Somos Todos Musas’, um bloco criado para o próximo Carnaval que prega exatamente o que o nome diz.
Não tem classificação nem hierarquia. “Acho que a grande questão é essa – somos todas musas. O que a gente precisa no mundo é de musas no sentido de pessoas que inspirem. Não que inspirem formas perfeitas e sim mudanças, liberdade. Com todos os corpos e todas as formas”, defende a atriz.