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Monstros

João, o que viveu pesadelo real e acabou morto com pancada na nuca

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

João caminhava pela rua quando viu a mantícora. Na verdade, ele avistou um ser monstruoso, de feições vagamente humanas, corpo de leão e cauda de escorpião, que se deslocava enroscando-se feito um gatinho nas pernas de um homem. Este andava tranquilo, sem tropeçar na criatura de pesadelo colada a seu corpo.

Sem acreditar no que via, João olhou fixo para os dois, como se a qualquer momento fossem dissipar-se na névoa matutina. E então, para horror seu, o monstro voltou-se em sua direção e sorriu. João recuou, como que atingido por um golpe no peito, deu meia volta e fugiu correndo para casa.

Mais tarde, parcialmente refeito do susto, ele fez uma pesquisa na internet, procurando por mitologia e depois monstros mitológicos. Deparou-se então com uma gravura da entidade que vira e leu pela primeira vez a palavra mantícora. Havia diversas representações, umas com asas de morcego ou dragão, outras sem. As feições também variavam, desde aquelas vagamente humanoides até uma cabeça perfeita de homem pateticamente presa ao corpo de um grande felino.

“Sua” mantícora não tinha asas, e dois aspectos a tornavam única. Primeiro, em todas as gravuras, os monstros tinham uma expressão bestial, enquanto a que vira demonstrara uma inteligência maligna no olhar e no sorriso dirigidos a ele (João tremeu, só de lembrar). O segundo é que, antes de mirá-lo, ela olhava, embevecida, para o homem a seu lado, como se este lhe fornecesse alguma coisa.

Durante dois dias João ficou em casa, perturbado demais para escrever (era redator free lancer para uma revista). Mas depois teve de sair; foi apavorado, com a certeza de que encontraria a mantícora. E não deu outra. Ela aproximou-se antes que tivesse tempo de fugir e sorriu, mas, dessa vez, de modo amigável.

– Olá amigo – falou o monstro em português perfeito, com uma voz grave e modulada. – São bem poucos os que conseguem nos ver. Valorizamos esses episódios.

– O que… que você quer? – balbuciou ele, apavorado.

– Só conversar. Como expliquei, gostamos quando alguém nos vê, traz um pouco de excitação à nossa longa vida…

Os dois caminharam até uma pracinha próxima e sentaram-se num banco. A mantícora observou que falaria a maior parte do tempo mas que ele poderia interrompê-la quando quisesse.

– Os outros não vão perceber nada – falou com um sorriso. – No máximo, pensarão que você está louco, falando sozinho… -Viemos do espaço. Não vou dizer o nome do meu planeta de origem, e de qualquer modo a palavra não significaria nada, sem coordenadas astronômicas precisas. Chegamos quando os humanos ainda viviam em cavernas. Eram apenas outra espécie de que nos alimentávamos; com isso, povoamos seus pesadelos. Mas, quando surgiram as cidades e as primeiras civilizações, percebemos que podiam satisfazer apetites mais refinados…

João ensaiou interrompê-la mas a mantícora retomou a explicação:

– Os humanos sonham e têm desejos, saboreamos essas manifestações do psiquismo. E sobretudo, sentem culpa e arrependimento. Ah, a culpa! É uma delícia sorvê-la na mente humana, antes mesmo de uma determinada ação se concretizar. – Interrompeu-se por um momento e prosseguiu. – Aquele homem que eu acompanhava no outro dia, por exemplo, sonha com a mulher do filho e sente-se um verme por isso. A cada dia mergulha na culpa e a cada dia a deseja mais. Ele nem desconfia de que a norinha transa com diversos caras e não teria o menor problema em incluí-lo na lista…Essa mescla de desejo e culpa, que absorvo dele, é um banquete!

Ele aproveitou o fim da explicação sobre a culpa para disparar uma saraivada de perguntas.

– Vocês são imortais? Se reproduzem? Quantos são? Onde estão? Por que consigo ver você?

-Calma! – respondeu o monstro, com um sorriso. – Vivemos muitos milhares de anos mas não somos imortais, no passado muitos de nós foram mortos por heróis da Pérsia e da Grécia antigas. Para sorte nossa, a era dos heróis já passou… – retomou o folego e continuou.

– Nós nos reproduzimos por cruzamentos entre espécies. Como você acha que recebi uma herança genética de homem, leão e escorpião? A teoria darwinista da evolução rechaça o cruzamento entre espécies tão diferentes, mas um pouco de magia ajuda…Só que os nascimentos são raríssimos entre nós.

– E vocês são quantos? Onde estão? – insistiu o ouvinte, fascinado com o relato.

– Somos bem poucos, uns 10 000 por todo o planeta. A maioria se concentra nas áreas metropolitanas, é mais fácil para saborear as emoções humanas que nos deleitam. Há um de nós em cada grande cidade. Que eu saiba, sou o único em São Paulo; se aparecer mais algum, sem dúvida estará de passagem e será ignorado. Afinal, lobo não come lobo e monstro não come monstro…

– E por que consigo ver você?

A mantícora ficou em silêncio por um momento, como se refletisse. Depois falou:

– Em cada geração, alguns humanos sensitivos conseguem ver-nos e registrar nossas formas. No passado, eles fizeram de nós deuses e demônios, não somos nem uma coisa, nem outra. Talvez você seja um sensitivo… – interrompeu o discurso e, ao retomá-lo, falou num tom ríspido – mas talvez não seja, É o que vou verificar agora.

Soprou no rosto de João e entoou algumas palavras misteriosas. No mesmo instante as roupas dele se romperam e ele viu, horrorizado, seus pés e pernas transformarem-se em cascos e pernas de bode. Ele quase desmaiou, mas a mantícora o amparou e o imobilizou, antes de retomar a explanação.

– Acompanhamos cada um dos raros nascimentos entre nossa gente, e soubemos que, em São Paulo, nascera um sátiro portador de uma mutação genética. Ele conserva a forma humana mas, em seu interior, abriga o monstro.

Ao ouvir a palavra, o rosto do sátiro crispou-se. A mantícora percebeu a reação, balançou a cabeça desgostosa e prosseguiu:

– Recebi a missão de verificar se esse sátiro dormente poderia ser incorporado ao nosso povo, mas é evidente que a simples menção da palavra monstro lhe provoca repulsa. Isso faz de você um perigo para nossa sobrevivência, você pode, algum dia, se revelar sob sua verdadeira forma e falar de nossa presença na Terra.

Dando uma guinada no discurso, a mantícora continuou:

– Não menti pra você em momento algum. Lembre minhas palavras, jamais afirmei que você era humano ou usei a expressão “vocês, humanos”, era sempre “os humanos”. Também afirmei que monstro não come monstro, é a pura verdade – o corpo de leão pareceu crescer. – Mas abate outro monstro sem problema algum.

E desferiu um forte golpe na nuca de João, matando-o instantaneamente.

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