Uma canção
‘Je t’aaaime…’ até certeza de que Marie estava morta
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emO escritor francês Marcel Proust escreve que, ao comer uma madeleine, biscoito recheado de creme, enveredou pelo magnífico esforço de reconstrução do passado que resultou na obra-prima Em busca do tempo perdido. Não é o caso de Tiago, suas madeleines são auditivas.
Outro dia, depois de muito tempo, ele resolveu ouvir Georges Brassens, um de seus intérpretes franceses prediletos. Quando Brassens começou a cantar Je serai triste comme un saule (Serei triste como um salgueiro-chorão), o primeiro verso de Le Testament (O testamento), ela chegou.
Ela é Marie, o ex-amor francês de Tiago. Era uma aparição, claro, mas, por algum motivo, não o assustou. Foi como se a esperasse.
No conto Desejo (já publicado no Café Literário de Notibras), este escriba, em nome do protagonista, a descreve nos seguintes termos: “Não era uma mulher especialmente bonita. Mignon, de seios pequenos e pouca bunda, tinha o nariz aquilino e grandes olhos castanhos que o fizeram npensar em uma corujinha. Mas tinha um sorriso deslumbrante e deuses, a voz! O francês de Marie era pura música, nada a ver com o nasalado edithpiafesco de tantas parisienses ou com o tatibitate sou-burrinha-mas-uma-delícia brigittebardoresco das mais gostosas. Era uma corrente melodiosa de sons que o envolveu, o aprisionou – e o deixou com um tesão arretado”.
Pois bem, ela começou a cantar junto com Brassens, como tantas vezes fizera nos braços de Tiago, tomando um copo de sidra normanda, no pequenino apartamento parisiense de seus longínquos amores. Em uma cadência que era apenas sua, introduzia nuances no fraseado que o cantor não havia tentado ou ousado explorar.
Havia um trecho que sempre deixava Tiago na ponta dos cascos: “Avant d’aller conter fleurette/ Aux belles âmes des damnés,/ Je rêv’ d’encore une amourette,/Je rêv’ d’encor’ m’enjuponner…/Encore un’ fois dire ‘Je t’aime’…/Encore un’ fois perdre le nord…” A tradução é algo como “Antes de ir jogar conversa fora/ Com as almas dos condenados/ Sonho ainda com um amorzinho/ Sonho ainda em me envolver com saias/ Ainda uma vez dizer ‘Te amo’/ Ainda uma vez perder o rumo…”.
Os versos resumiam a situação do moço. Ele sonhava com um amorzinho – e estava vivendo um nos braços de Marie, apesar de ser casado e ela, namorada de um amigo seu. Ele sonhava em se envolver nas saias dela – ou melhor, tirá-las, remover tudo e partir para uma transa de responsa. E antes, durante e especialmente depois da coisa, dizer “Te amo” e ouvir “Je t’aime”, que a cotovia enchia de aaa, Je t’aaaime, numa experiência auditiva capaz de fazer qualquer vivente perder o rumo.
Tudo isso, e mais o que é relatado em Desejo, a paixão avassaladora que tomou conta deles e a culpa que a complementou, ocorreu no longínquo ano de 1976. Na despedida, ela se lastimou, chorosa, que iria perdê-lo para sempre – e ele teve certeza de que não era verdade, que a reencontraria.
Em 1987, a previsão cumpriu-se, Tiago e Marie tornaram a se ver em Paris, a ficar juntos, a transar gostosinho. Só que o tempo é uma pantera, ambos estavam na meia idade, ele não vinha da festa móvel da revolução portuguesa, a magia havia desaparecido. Quando se separaram, depois dessa repetição que deixou um gosto meio amargo na boca, em comparação à delícia anterior, ele sentiu que nunca mais a veria.
Mas não, 35 anos depois ela invadiu seu apartamento paulistano com a aparência que tinha em 1976, quando a conheceu, tornando mais memorável a experiência de ouvir Brassens, prolongando certas palavras com o seu fraseado insólito, seus “Je t‘aaaime”. Depois, quando a canção acabou, foi-se embora em silêncio, sem se despedir, sem beijá-lo, apenas com um arremedo triste de um sorriso.
E Tiago teve certeza de que Marie estava morta.