Ultraje
‘Rancor (por conta de isqueiro), Guida, é jararaca enrodilhada dentro do peito’
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emMargarida, Guida, Margô… nem sei como chamar-te hoje em dia. Como faz muita gente boa (e um punhado nem tanto), usei o Face para rastrear velhos amigos. Em 2021 encontrei-te em Portugal; pedi amizade – e simplesmente me ignoraste. Não me bloqueaste, apenas conservaste um silêncio sobranceiro, que me magoou um bocado.
“Se calhar, Margarida esqueceu de mim”, cheguei a pensar. Mas não, na boa e velha Abril Cultural havíamos construído mil cumplicidades. Tu me apresentaste Os vampiros, de Zeca Alfonso, canção de protesto lusa, e Le déserteur, de Boris Vian, canção de protesto francesa. Desse modo, contribuíste para dar um mínimo de lustre, de sofisticação ao ex-preso político de Niterói, chegado a plagas paulistanas em 1969.
Não lembro quando ziguezagueaste de volta à Europa. Sei que esbarrei em ti em 1975, no café A brasileira do Chiado, reduto de Fernando Pessoa.
Conversamos por muito tempo, bebemos porradas de imperiais e coisas mais fortes, e depois fomos para a casa em que moravas com a tua filha.
E aí foi um desastre. Antecipando uma canção que Caetano só escreveria mais tarde, “na hora da cama, nada pintou direito”. Estávamos bêbados e havia muita gente no leito, amigos queridos que se materializaram, com olhares de censura. Aí desistimos e continuamos a conversar. Sobre a revolução, claro, sobre sua trajetória editorial lisboeta, sobre seus amores lusos. Não ousei competir com tantos gajos e gajas.
No dia seguinte, no retorno de comboio a Lisboa, sua filha fuzilou-me, no vagão lotado:
– Minha mãe não há-de casar consigo. Há-de casar com o Pasqualito!
Todos olharam com desprezo para o sedutor que tentava desfazer um casal abençoado pelo céu. Fiquei vermelho como um pimentão, custei a rir do vexame.
Prosseguindo na árdua tarefa de sofisticar o botucudo, me apresentaste a algumas uisquerias famosas. Permaneci-lhes fiel, mesmo depois de perder o contato contigo, no início de 1976 ou pouco depois.
Nosso encontro seguinte só ocorreu em 2000. Uma amiga para quem eu frilava num grande projeto editorial importou o teu passe. Começamos a conversar, e de repente lançaste a bomba:
– Pode devolver o meu isqueiro?
Eu não estava com ele, só com o meu. Mostrei-o, expliquei a coisa, mas insististe:
– Devolve o meu isqueiro.
Senti-me ultrajado. Não por tua confusão, vivíamos chapados na época.
Mas pela arrogância implícita, “meu isqueiro sumiu, deve ter sido pego pelo brazuca”. Ou, sei lá, como serias a editora no projeto, pretendias me colocar, à bruta, na condição de subordinado.
Só que não funcionou, Margarida. O isqueiro (que não estava comigo) não apareceu, pulei fora do projeto editorial, que deu chabu, e retornaste à Europa. Não sei quando. Continuamos com nossas vidas, reencontrei-te no Face, pedi amizade, me ignoraste. Como ignoraste minhas negativas ultrajadas no episódio do isqueiro.
Mas o rancor, Margarida, é uma jararaca enrodilhada dentro do peito, a transmutar ressentimento em peçonha, pronta a dar o bote. Há poucos dias, pedi-te novamente amizade, e te enviei este texto. Leia-o com atenção, por favor. Se o ignorares, se ignorares, arrogante, minha mão estendida, embarco no primeiro avião para Lisboa. A cidade é um ovinho, hei-de encontrar-te – e então a serpente do ultraje lançará o ataque definitivo.