Cinderela
O dia em que Clóvis incorporou Madame Satã e espalhou safanões
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emA musa de Clóvis era madame Satã. Não por acaso, os dois eram homossexuais assumidos. A diferença era que Clóvis não enveredara por uma vida de crimes, trajetória trilhada por sua diva; em vez disso, era estivador no porto do Rio de Janeiro. E tampouco era um lutador tão respeitado e temido quanto sua inspiradora, embora, quando necessário, se garantisse.
Às vezes, Clóvis passava a noite com um bofe. Fazia parte e, mais que isso, o corpo exigia. Mas o que lhe dava mais prazer era transformar-se, vestir-se de mulher e mergulhar na vida. Nos fins de semana, repetia sempre, “É hoje que solto minha mulher” e saía de casa de short, camiseta e chinelo nos pés. Caminhava até um matinho, achava a sua árvore, trepava nela e tirava de uma reentrância no tronco os acessórios da transformação.
Eram um vestido e um par de sapatos de mulher. Ambos negros, ambos gastos mas, ainda assim, apresentáveis. Clóvis os encontrara no mesmo dia, jogados na rua; considerou isso um presente de sua pomba-gira e lhe agradeceu com fervor. Para travestir-se, removia com cuidado o plástico que protegia da chuva os objetos, tirava a roupa de homem, deixava-a no oco da árvore e em minutos emergia, esplendorosa, uma mulher disposta a soltar os cachorros no bas fond carioca. Depois, era só aplicar um pouco de maquiagem e caminhar, desajeitado – seus pés mal cabiam nos sapatinhos – até um cabaré frequentado por travestis. Podia escolher, em todos eles era uma figura respeitada e bem-vinda.
Certa noite, ao chegar perto da árvore, Clóvis viu no chão, junto a ela, um único de seus sapatos queridos. Subiu rápido pelo tronco e teve seus receios confirmados: o plástico estava rasgado, o vestido em pedaços, e o outro sapato desaparecera. O exemplar, no chão, fora deixado como zombaria, uma assinatura dos autores daquela ação perversa.
O estivador desceu devagar, cabisbaixo; tão cedo não haveria libertação de sua mulher interior. Mal tocou os pés no solo, ouviu as zombarias de alguns rapazes escondidos em um matagal próximo. Ao vê-lo sozinho e desarmado, mostraram-se. Eram quatro, e passaram a questionar, entre risadas, sua masculinidade.
Bom, macho ele não era mesmo. Era homossexual que nem sua musa, o que nunca a impediu de baixar o cacete nos que se atreviam a zombar dela.
Cheio de raiva, Clóvis recebeu uma madame Satã rápida e partiu para o ataque. Pegos de surpresa, os machões não conseguiram se defender do estivador enfurecido, que os cobriu de porrada.
Enquanto os quatro jaziam por terra, sangrando e tentando conter as lágrimas, a encarnação de madame Satã ordenou:
– Tirem a roupa. Os sapatos também. Tirem tudo.
Eles obedeceram. Clóvis jogou no chão os documentos de identidade mas conservou os que mencionavam suas residências. Depois prosseguiu:
– Vão embora, seus cornos. Vou deixar junto à árvore um sapato, pra fazer companhia àquele que vocês abandonaram ali. Não esqueçam que sei onde moram. Se um dos dois sumir, acabo com todos vocês!
Enquanto os rapazes fugiam, choramingando, Clóvis escolheu um belo sapato de sola de borracha e o deixou perto do seu sapatinho. Depois pensou:
“Quem os vir lado a lado, talvez imagine um encontro amoroso interrompido às pressas, com os amantes fugindo, sem terminar de se vestir. Dificilmente poderá imaginar que um dá testemunho de uma maldade, e o outro, de uma vingança.”
Deu um suspiro, abriu uma tentativa de sorriso e falou pra si mesmo, em voz alta:
– Estou na vibração de Cinderela. No conto de fadas, ela vai ao baile e perde um sapatinho; quanto a mim, tenho apenas um sapatinho e não fui me divertir. Mas vou vender essas roupas e esses pisantes, comprar um vestido e sapatinhos lindos de morrer, e logo, logo vou estar como o diabo – e madame Satã – gostam.