Bahia
Um conto sobre o dono de toda aquela gente, como Rubinho
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emAssim que avistei aquela propriedade em Maragogipe, Bahia, correu-se um calafrio por todo o corpo. Mesmo ainda não contando com oito anos, sabia que ali morava o dono de todas aquelas terras, de toda a região, de toda aquela gente, incluindo meus pais, irmãos e eu. Antes de ser levado dos braços de minha mãe, ela havia me advertido que esse dia logo chegaria.
— Rubinho, meu filho, não é que sua mãe não deseja estar sempre ao seu lado. É a vida que nos força a fazer coisas contra a nossa vontade.
Mal entrei na sala, arrastado pelas mãos firmes de um dos homens que haviam me arrancado da minha casa, fui colocado em um canto com outras crianças. Todos ficamos mudos, enquanto um sujeito, com um grande livro nas mãos, lia e fazia anotações. Sentado em uma poltrona ornada, que mais parecia trono que assento de gente comum, estava Dom Rubens.
Creio que o que mais me chamou a atenção foi aquele olhar penetrante e perscrutador, como se já soubesse todas as respostas antes mesmo de alguém pensar em fazer perguntas. Não era mais alto nem mais corpulento do que os homens comuns, mas era nítida a altivez de seus gestos. Tipo sério e sombrio, não fazia questão de esconder o mau humor e, não duvidei naquele instante, que Dom Rubens não era muito afável.
— Alberico, quem é o negrinho mais claro?
— É o filho da Alzira, Dom Rubens.
— Hum. Qual é o seu nome, menino?
Diante de tal pergunta, não soube o que responder, até que Alberico, o homem do livro, se dirigiu a mim com rispidez.
— Não tá ouvindo o patrão, moleque? Diga logo o seu nome!
— Rubinho.
— Rubinho, senhor!
— Rubinho, senhor.
— Melhor assim, moleque! Dom Rubens, se o senhor quiser, ponho esse negrinho em rédeas firmes. Rapidinho ele aprende a respeitar o senhor.
— Não é preciso. Traga-o aqui.
Fui arrastado pelo braço e, assim que estaquei diante do dono de tudo, ele me observou como tentando encontrar algo que lhe fosse conhecido. Em seguida, num gesto que jamais pensei que Dom Rubens teria, ele estendeu a mão direita em minha direção.
— Rubens! Parece que compartilhamos o mesmo nome.
Sem entender, estendi a minha mão, que recebeu algumas sacudidelas amigáveis. Mesmo nome? Como assim? Naquele instante percebi que Rubinho era meu apelido, que era o modo carinhoso que mamãe escolheu me chamar.
Apesar de não me sentir confortável com aquela situação, de certo modo, senti-me acolhido por Dom Rubens, como se algo nos ligasse além do nome. Tanto é que, apesar da fisionomia quase rígida, foi como se estivesse sido acolhido por meu pai. Tal percepção, todavia, foi abalada no instante seguinte, quando, por um gesto quase imperceptível, ele ordenou que Alberico me levasse para junto dos outros meninos e meninas.
Nos anos seguintes, sobrevivi que nem mais um dos tantos escravizados. Antes do amanhecer, era enxotado do galpão, onde a palha nos servia de colchão e coberta e, caso ela não fosse suficiente, espremíamos na tentativa de esquentar nossos corpos sofridos.
Colhíamos na época da colheita, semeávamos na época do plantio. De tão fatigados, sonhávamos com a senzala no final do dia, que, quase sempre, se findava quando a noite já não era nenhuma menina. Engolíamos o que conseguíamos engolir e nem nos recordávamos do último momento acordado, tamanho o cansaço, até que éramos cutucados com os bicos das botinas do capataz e outros pretos com certas regalias.
Certa feita, quando já contava com meus quase 15 anos, fui arrancado da senzala com pontapés de Juliano, um dos mais cruéis que trabalhavam ao lado do capataz. Tentei me desvencilhar dos chutes, mas a maioria me acertou dolorosamente.
— Anda, negro!
Fui amarrado em um tronco. Sabia que os que reclamavam eram ainda mais surrados e, por isso, me mantive calado, até meus gemidos eram mudos. Juliano caprichou nas chibatadas, rasgando o couro das minhas costas. No entanto, assim que preparava para mais uma lapada, o meu algoz foi impedido pela voz rouca de Alberico.
Retirado do tronco, fui levado até Dom Rubens, que a tudo assistia. Ele me encarou sem mostrar emoções, até que fez um breve sinal de cabeça para Alberico. Este, por sua vez, ordenou que dois pretos arrastassem Juliano para o tronco. Suas vestes foram arrancadas. Logo em seguida, Alberico me entregou o chicote. Não precisou dizer palavras.
Fui tomado por uma fúria e chicoteei Juliano até minhas forças se exaurirem. A despeito do sangue que escorria por seu corpo, minha vítima não emitiu nenhum som antes de desmaiar. Fui amarrado no mesmo tronco e, assim, passamos os próximos dias ali a pão e água.
Apesar de nos olharmos, não conversamos. Cheguei a imaginar que passaríamos o resto dos nossos dias ali, até que, não me lembro se na manhã do sexto ou sétimo dia, fomos desamarrados. Alberico mandou nos dar sabão para nos lavarmos. Ganhamos roupas limpas e, apesar de ainda sofrermos com as carnes expostas, fomos levados para o casarão, onde estava Dom Rubens sentado na poltrona.
Dono de tudo, senhor de todos nós, o homem nos observou por alguns instantes. Pela primeira vez observei a cor dos seus olhos. Eram cinzentos, algo raro por ali. De poucas palavras, apesar de homem cruel, pareceu-me sincero.
— Juliano, quero que você ensine tudo o que sabe pro Diego.
Diego? Quem era esse Diego? Não precisei esperar muito para perceber que Diego era eu. Dom Rubens, o rei daquele lugar, acabara de dar nome ao que já era seu antes mesmo de minha mãe me parir.
Hoje, perto de completar 30 anos, continuo trabalhando ao lado de Juliano. Não nos tornamos amigos, mas aprendemos a conviver de modo a nos garantir certo conforto, ainda mais em relação à penúria imposta aos outros pretos. De vez em quando, a chibata estala no lombo de algum negro preguiçoso, seja pelas minhas mãos, seja pelas do Juliano.
Dom Rubens ainda vive, como se fosse a erva daninha que resiste às novas plantas. Não faz muito tempo, ele conversou comigo sobre ter me escolhido entre tantos outros escravos.
— Sei que você pensa sobre isso, Diego.
— De vez em quando, Dom Rubens.
— Sabe por que o escolhi?
— Não, Dom Rubens.
— De algum modo, o sangue que corre aqui nas minhas veias são como o sangue que corre aí nas suas.
Devo ter feito cara de espanto, pois o velho desandou a rir até engasgar. Tossiu quatro ou cinco vezes e voltou a me encarar com aqueles olhos cinzentos.
— O senhor é meu pai, Dom Rubens?
— Não seja ridículo, negro! Não sou homem que se deita com sua gente. Diego, meu falecido irmão, é que tinha esse costume mundano.
A vontade de matar Dom Rubens ainda perambula pela minha mente, mas é cada vez mais escassa. Não sei se por medo de retornar à senzala, cujo odor ainda impregna minhas narinas ou, então, há tempos suprimi os resquícios daquele menino, cuja mãe chamava de Rubinho.
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