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Amor de mãe

O dia em que ela apagou, a mente inerte, e eu, filho Godofredo, com a grana

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

A Mãe não gosta mais de mim. Venho notando faz tempo, não cozinha mais a comida que eu gosto, nem é difícil de fazer, feijão, arroz, mistura, não varia. Está sempre de cara fechada, falo com ela e não responde. Nem se queixa mais de eu não ter casado, aos 52 anos ainda morar com ela. Antes reclamava, agora, nem um pio. E parece ter esquecido que perdi o emprego e não ajudo com as despesas, está tudo nas costas dela. Falava sobre isso o tempo todo, agora, silêncio de pedra, é como se tivesse desistido de mim.

Tem pior. Outra noite, cheguei em casa meio bêbado, quando entorno umas cachaças fico carinhoso e brincalhão. Cheguei perto dela e dei um beijo, ela me empurrou, com a fisionomia assustada, e falou:

– Que é isso? Sou uma viúva respeitável! Quem é o senhor?

Pensei que estivesse brincando e entrei no jogo.

– Ora, sou o Agenor, seu vizinho.

Achei que ela fosse rir, mas não, a Mãe continuou, séria.

– Seu Agenor, nunca lhe dei intimidade para isso. Se fizer de novo, vou contar para sua esposa.

Depois disso, emudeceu pelo resto da noite. Quando fui dormir, ela estava sentada na cozinha, olhando fixo para o vazio.

No dia seguinte, não comentou o acontecido. Tenho certeza de que se lembrava e de que me reconheceu, mas não me chamou pelo nome, parecia que estava com medo de errar.

A coisa foi se agravando, então tive de buscar auxílio profissional. Não de um médico, uma consulta custa os olhos da cara; de um enfermeiro conhecido meu. Contei o que estava acontecendo, e ela nada, uma estátua, vai ver nem ligava que a gente estava falando dela, bem a seu lado.

O cara tentou puxar conversa com ela, não conseguiu, depois me falou que parecia um caso de demência, algo comum em idosos. Podia ser, ela já está com 80 anos. Mas sei que não é nada disso, contei tudo para o pastor da minha igreja e ele me garantiu que algum demônio entrou no corpo da Mãe. Para mandá-lo de volta pro inferno, ela precisa passar por um ritual de expulsão de capetas, tem toda semana. Só que a teimosa não quer, nem responde quando insisto que se torne evangélica, que nem eu.

Antes discutia comigo, dizia que era espírita, que não ia mudar de religião depois de velha. Agora, silêncio total e uma expressão de ausência no rosto, como se nem ouvisse o que eu estava dizendo.

Então, decidi interná-la em um lar para idosos. O lugar não é muito limpo – na verdade, é bem sujo –, mas pelo menos é de graça, consegui a vaga com um vereador que ajudei a eleger. E claro que vai ser uma internação temporária. Para sair dali, basta que ela me telefone, peça desculpas pelo modo como agiu, prometa que vai se tornar evangélica, ir comigo ao culto, participar da expulsão de demônios. Precisa garantir também que vai fazer minha comida predileta, que nunca mais vai reclamar por eu não ter casado, morar na casa dela e não ajudar com as despesas…

A Mãe também tem que reconhecer que não roubei a aposentadoria dela, é uma miséria mas é o que me sustenta, se não mando um tostão pra ela é porque não precisa de dinheiro onde está, seria até perigoso, alguns cuidadores têm cara de bandidos e as cuidadoras não têm uma aparência muito melhor.

Detalhe importante, quando ligar pra mim, ela precisa me chamar pelo meu nome, Godofredo. Nada de Filho ou meu filho, Go-do-fre-do. Acho um nome de classe, vai bem com um senhor respeitável e temente a Deus, que nem eu.

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