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'Nunca fui santa'

Shirley, de padeira a assessora na Câmara, admite que chegou lá usando a cama

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Não sou o que se pode chamar de pessoa intacta pela mácula da desonestidade. No entanto, desde que me entendo por brasileira, não sou nenhuma pérola da criminalidade. É verdade que tenho cá meus defeitos, que assumo quase todos, mas que não diferem em número e grau de outras gentes.

Comecei a minha vida profissional na contravenção, depois virei padeira. Tinha carteira assinada, direitos trabalhistas, mas o salário era uma miséria para modelar tanta farinha de trigo em formato de pães fofinhos por dentro e crocantes por fora. Uma delícia, por sinal. E o cheiro, quem é que resiste àquilo às seis horas da manhã?

Naquela época, conheci o Osvaldo, que era confeiteiro de mão-cheia. Ele, apesar de não ser nenhum príncipe saído das histórias da Disney, conseguiu me encantar com tanta doçura. Que homem! Pena que não durou tanto, pois logo me apareceu o Márcio.

Um traste! Lindo, é verdade, mas que não vale meia dúzia de pães dormidos. Mas não adianta ficar aqui lamentando o encanto que me arrebatou naquele tempo. Apaixonada que estava, entreguei meu corpo ao miserável. Quanto à alma, devo tê-la ofertado ao Diabo em troca do vil metal.

Se me arrendo do que fiz? Pra que fingir diante de tanta hipocrisia que me rodeia? Sejamos francos. Quem, em santa consciência, não trocaria um amor verdadeiro, se é que ele realmente exista mesmo, por uma vida regada ao luxo e, não raro, à própria luxúria? Se a ganância faz parte do pacote? Não serei eu a afrontar a sua inteligência com mentiras.

É óbvio que amo a vida que levo. No entanto, isso não é capaz de refutar o ódio que sinto de mim mesma. Que sou uma crápula, não resta qualquer faísca de dúvida. É o que sou e, portanto, sou obrigada a conviver com tamanha pecha.

Ontem acordei disposta a fazer algo diferente. Recusei quatro ou cinco convites para almoçar e um tanto para jantar. Dispensei Carlos, meu motorista particular, do seu ofício por um dia. Que descansasse do trânsito e fosse curtir a folga inesperada como quisesse. Quanto a mim, tomei a decisão de visitar meu passado.

— Bom dia! Aqui ainda serve aquele brigadeiro especial?

— Shirley! Há quanto tempo!

— Não sabia que você havia se tornado balconista, Osvaldo.

— Não soube?

— Do quê?

— Seu Ernesto faleceu.

— Nossa! Não sabia.

— Pois é. Os filhos não quiseram tocar a padaria. Eu tinha um dinheirinho guardado e, então, comprei o estabelecimento.

— Hum! Então, agora você é o patrão.

— De certo modo, é isso.

Enquanto degustava dois brigadeiros, muitas recordações passaram pela minha mente. Já estava quase de saída, quando o Osvaldo me convidou para almoçar. Se aceitei? Nem perguntei qual seria o cardápio, ainda mais diante daquele sorriso lindo.

Osvaldo, apesar de não possuir feições perfeitas, sempre cuidou muito bem dos dentes. Tem um leve diastema nos dentes superiores, o que lhe confere certo ar de ingenuidade. Um charme, como minha falecida avó costumava dizer.

Comemos um simples macarrão ao alho e óleo no pequeno apartamento, que fica logo acima da padaria. É engraçado que há muito tempo não comia tamanha iguaria da classe trabalhadora. Osvaldo preparou enquanto conversávamos trivialidades.

— Shirley, desculpe por não te oferecer algo mais condizente.

— Não se preocupe. Estou adorando! Esse macarrão tá muito bom!

Poderíamos ter ido para a cama, caso não fosse um resquício de dignidade que percebi em mim. Não porque eu não quisesse, ainda mais depois de ser tratada como uma rainha por aquele plebeu. E que plebeu! Entretanto, Osvaldo não mereceria ser tratado como alguém descartável. Ele nunca foi desse tipo, e eu admiro tamanha honestidade.

Antes de nos despedirmos, ainda encaramos um picolé de frutas na padaria. Foi então que o meu ex-amor me perguntou como era trabalhar como assessora na Câmara dos Deputados.

— Eita, lugarzinho pra ter gente que gosta de se aventurar a fazer coisa errada.

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Eduardo Martínez é autor do livro 157 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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