Maranhão
Ambrósio, o marceneiro, mantém Vai e Vem na mão, porque se for, não volta
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Marcenaria. Pois era esse o ofício da família Lisboa, cujo nome era escrito e falado como o da capital de Portugal. No entanto, até onde se tinha notícias, aquela gente teria vindo de Albufeira, cidade litorânea com menos de 45 mil habitantes na região do Algarve. Talvez tenha sido esse o motivo de se instalarem justamente ali em São José do Ribamar, no Maranhão.
O município, que fica quase colado a São Luís, caso a capital não fosse uma ilha, acolheu os portugueses, que se sentiram em casa logo que aportaram. É verdade que, a princípio, estranharam o modo brasileiro de ser e de pronunciar as palavras, como se fossem pastéis de nata expelidos de maneira adocicada por lábios sorridentes. Seja como for, logo se deixaram envolver por braços tão calorosos.
Os primeiros Lisboas que chegaram ao local foram liderados pelo seu Joaquim Lisboa, tataravô daqueles que, ainda hoje, permanecem por ali. O antepassado, que era afamado por conta da arte de marcenaria, passou seus conhecimentos às gerações futuras, cujo representante mais destacado, nos dias atuais, é o velho Ambrósio, cujo bigode parece revertido de toda sabedoria, entremeada de certa rabugice.
A despeito da manutenção do ofício dos antepassados, Ambrósio estava descontente com o descaso do Francisco, único neto, em relação à tradição familiar. Será que ela morreria assim que ele e Ronaldo, o filho, fossem fazer companhia aos parentes no cemitério?
Ambrósio, diante de tamanho impasse, andava demasiadamente apegado às ferramentas, como se tentando preservá-las de possível descarte por parte do herdeiro. Tal desconfiança, aliás, parecia lhe fazer sentido, pois são todos objetos manuais. Nada dessas modernidades movidas à energia elétrica. Como o velho ainda gosta de dizer, suas ferramentas são movidas a feijão.
Apesar de se dar bem com os nativos, Ambrósio conserva certos hábitos dos seus antepassados, todos homens muito sérios, sisudos, de pouquíssima conversa. Talvez, por isso mesmo, ainda guarde o característico sotaque dos patrícios, como se eles nunca tivessem posto os pés fora da pequena Albufeira. Inclusive, não se via ninguém naquela oficina que estivesse ocioso, sentado e perdendo tempo em bate-papo.
De tão apegado às ferramentas, Ambrósio as conhece por nome. O martelo se chama Toc-Toc; a enxó, Rompe Madeira; a pua, Fura Pau; o serrote, Vai e Vem. Todas são tratadas com reverência pelo marceneiro, que faz questão de lustrá-las assim que os trabalhos do dia chegam ao fim. Isso, aliás, intriga alguns brasileiros, que não entendem por que tanto cuidado com ferramentas, que, por sinal, poderiam ser trocadas por outras mais novas e eficientes.
— Meu caro Rubens, o segredo é tratá-las com muito respeito, carinho, acomodação, manutenção e sem se esquecer do principal.
— E qual é o principal, seu Ambrósio?
— Nunca devemos emprestá-las. Jamais! Nem mesmo para o padre.
Ambrósio, enquanto cofiava o bigode, que mais parecem duas asas de pássaro, que foram esquecidas de serem engolidas, observava a expressão de espanto do interlocutor. E foi justamente nesse instante que adentrou na oficina o pequeno João, na inocência dos seus oito anos de idade.
— Seu Ambrósio, boa tarde.
— Boa tarde, João.
— O meu pai me mandou aqui para ver se o senhor empresta o Vai e Vem pra ele.
Rubens, que acabara de ouvir todo aquele discurso sobre as preciosas ferramentas do marceneiro, ficou atento ao desenlace da conversa.
— João, volte e diga ao seu pai que Vai e Vem não vai. Se o Vai e Vem fosse e viesse, Vai e Vem iria. Entretanto, como Vai e Vem vai e não vem, Vai e Vem não vai.
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Eduardo Martínez é autor do livro 157 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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