Aos Manés anônimos
A lenda das pernas tortas que calou Santa Fé
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Na década de 50, uma histórica comunidade do interior do Rio Grande do Sul vivia uma euforia inédita.
O clube de futebol da cidade, Inter-SF (Inter de Santa Fé), atravessava uma grande fase.
Contando com um esquadrão que jogava por música repleto de talentosas individualidades, a equipe disputava pau-a-pau a liderança do campeonato gaúcho com a poderosa dupla Grenal.
Neste contexto, aproximava-se o aniversário de cem anos da cidade, data emblemática que exigia uma grande festa e um expressivo evento com a participação do maior orgulho da comunidade naquele momento: o seu brilhante e quase imbatível escrete.
O prefeito da cidade e o presidente do clube reuniram-se para planejar o histórico festejo que deveria estar à altura do entusiasmo dos munícipes.
– Nosso centenário merece um jogo contra um time de outro estado, de preferência, São Paulo ou Rio, opinou o prefeito.
– Hum…certo, mas não pode ser um time muito forte, afinal, não podemos correr o risco de perder, ponderou o presidente do clube.
– Concordo e acho que encontrei a solução. Tenho um primo que mora na cidade de Magé, na Baixada fluminense. Ele me falou que por lá tem um time meio amador de nome Pau-Grande Futebol Clube.
– E esse time… é bom?
– Nada, será molezinha ganhar deles! O Clube só foi fundado no ano passado e disputa a segunda divisão do campeonato carioca.
– Mas não fica caro demais convidar esses viventes para viajarem até aqui? Passagem de avião não é barata.
– Sem problemas…meu primo me falou que eles viajam até em carroceria de caminhão por lá. Eles vão aceitar se tocar para cá de ônibus mesmo. Nosso custo ficará baixíssimo.
– Então, fechado! Será o jogo do ano do centenário e ficará nos anais da cidade: Inter de Santa Fé x Pau-Grande do Rio de Janeiro.
– E o melhor é que a vitória já está no papo…no time deles parece que tem até um jogador com as pernas meio defeituosas.
Chegado o grande dia, a cidade estava em polvorosa e o estádio – com capacidade para dez mil torcedores – expelia gente pelo ladrão. A confiança em uma grande apresentação e em uma vitória do time da casa era absoluta entre os torcedores, sendo que o placar mais pessimista das apostas era 2 x 0 pró Inter-SF.
Zeloso ao extremo para assegurar um bom resultado, o presidente do clube mandatário foi confabular com o juiz antes da partida, um conterrâneo e amigo de longa data.
– Agomar, sei que não vai ser necessário… mas, se precisar, podemos contar com uma mãozinha tua, né?!
– Vou apitar dentro das regras, Nascimento.
– Claro que sim…mas não custa dar uma forcinha em caso de alguma necessidade. Não podemos perder esse jogo de jeito nenhum, entendes?
– Já disse que vou ser absolutamente profissional. E, sinceramente, Nascimento, com medo de perder para time que até aleijado tem?. Ora, faça-me o favor!
Nos camarotes, o prefeito e a primeira dama da cidade – ao lado do governador e de vários políticos importantes do estado – posavam orgulhosamente para as fotos e derramavam-se em amabilidades com os convidados.
Afinal, era um dia importantíssimo na agenda do primeiro mandatário de Santa Fé, visto que as próximas eleições já estavam batendo à porta.
Chegado o momento do inicio do prélio e postadas as equipes em campo, mal se ouviu o apito do juiz em função do barulho ensurdecedor que tomava conta do estádio.
Os primeiros dez minutos da partida ocorreram conforme a expectativa geral do estádio: o time da casa impondo a sua maior categoria e pressionando os visitantes que, por sua vez, defendiam-se como podiam.
Foi então que aconteceu…o tempo e o vento, abraçados, imobilizaram-se!
Pela primeira vez a bola foi passada para o jogador do time do Pau Grande que tinha as pernas tortas.
Para estupefação geral, o rapaz dominou a pelota – parecendo imantá-la nos seus pés – e, em seguida, enveredou magicamente rumo à meta do time da casa, fintando inapelavelmente todos os adversários que tentavam barrar a sua assombrosa carreira.
Por fim, próximo à marca do pênalti, ele completou a jogada com um certeiro e indefensável petardo no ângulo esquerdo da meta defendida pelo impotente goleiro Valmir.
O estádio, até então barulhento e festivo, foi tomado por um silêncio sepulcral.
Os torcedores se entreolhavam com um incrédulo “você também viu isso?” estampado nas retinas.
No campo, os jogadores do Inter-SF reiniciaram o jogo tentando se recompor da inusitada surpresa, tendo no rosto uma expressão dicotômica de quem não entendeu nada do que acabara de enxergar.
Nos minutos que se seguiram àquela distopia, a bola parecia não mais obedecer aos pés dos donos da casa, indo se aninhar sempre sob o domínio sobrenatural do inacreditável ponta direita do time do Pau-Grande.
Os craques mais festejados do time da casa, Naldo, Chicote, Ginga e Boninho, ao invés de desenvolverem a sua refinada técnica de jogo, assistiam – paralisados e extasiados – às jogadas imprevisíveis do jovem camisa sete que mais parecia um anjo flutuando sobre o gramado.
Bestificados, os torcedores assistiam o time do Pau-Grande empilhar gol em cima de gol, sempre com a participação mortífera e decisiva do seu endiabrado ponta-direita.
Aos 35 minutos do primeiro tempo, o placar já marcava 5 x 0 para o time visitante.
Foi então que Agomar, o juiz da peleja, soprou longamente o apito com todas as suas forças e, em desespero de causa, gritou:
-O jogo acabou! O Inter-SF venceu por pontos!
Nos camarotes, em meio a discretos e sardônicos sorrisos dos convidados das outras cidades, o presidente do clube da casa dirigiu um olhar furioso para o catatônico prefeito, enquanto ambos se retiravam apressadamente para longe das vistas dos incrédulos torcedores em choque.
No campo, enquanto os jogadores dos dois times saiam do gramado, o rapaz das pernas tortas fez questão de cumprimentar gentilmente a todos os seus constrangidos adversários:
-Obrigado, João, parabéns, João, até logo, João, prazer, João, desculpe, João…após adentrarem o vestiário, os “Joâos” murmuravam entre si: “Pô, gente boa esse sujeito!”. E nunca mais se ouviu falar dele!
No dia seguinte, como em um acordo tácito, ninguém em Santa Fé comentou o ocorrido na véspera… as duas rádios da cidade só tocaram música, enquanto que o jornal local ignorou completamente o evento, preferindo estampar na capa uma manchete sobre o início da primavera.
Não obstante, virou costume na cidade a expressão “olha o bagual de pernas tortas” quando se queria advertir alguém sobre a possibilidade de alguma surpresa muito fora da curva ou sobre algum perigo completamente insuspeitado e iminente.
Ombreando com a mula-sem-cabeça e com o saci-pererê, surgia assim nos pampas sulinos a incrível lenda das pernas tortas.
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