Ceará
Joaquim, o supersticioso, reencarna, promove luxúrias e espalha enxofre
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Joaquim sabia que, pelas estatísticas, não lhe sobrava muito tempo. Talvez dois ou três anos, o que já faria do sujeito o mais longevo entre os parentes mais próximos, a maioria devidamente acomodada no cemitério de Ibicuitinga, município localizado na região do Baixo Jaguaribe, no Ceará. Apesar de agradecido por resistir à passagem do tempo, o velho não levantava as mãos para cima, pois tinha receio de Deus puxá-lo antes da hora.
Tamanha crença afastou Joaquim da igreja. Os outros fiéis e o padre, receosos de que o homem teria perdido a fé, tentaram demovê-lo dessa ideia. Não adiantou, nada arrancava o pensamento do idoso de que sua hora estava próxima e, por isso, não fazia sentido para ele atender ao pedido de retornar à casa de Deus.
— Seu Joaquim, o Senhor está sentindo a sua falta nas missas.
— Padre Orlando, pode ficar sossegado, que converso com Ele todas as noites antes de me recolher.
A despeito da superstição, eis que, numa noite em que todas as estrelas estavam encobertas pelas nuvens, Joaquim, sentindo um aperto no coração, resolveu dar uma volta pelo bairro. Não se sabe se por conta da falta de obras da prefeitura ou por algo desconhecido, o velho acabou caindo em um buraco e desapareceu. Ninguém nunca mais o viu, mas um fedor de enxofre inundou toda cidade durante os próximos sete dias.
O sumiço de Joaquim, apesar de encher de comoção aqueles que o conheciam, não tardou, começou a ser cada vez menos comentado até que, antes mesmo da virada da estação, quase ninguém mais se recordava do ocorrido. Até mesmo dona Mirtes, a esposa, parece que teria se conformado com a ausência do marido.
Foi numa noite de verão, quando todos da rua já haviam se recolhido, que chegou à pequena Ibicuitinga um tipo possuidor de estereótipo destacado. Uns 30, 35 anos, cuja presença se fazia notada por todos, especialmente por causa daqueles olhos raros, de um amarelo que reluzia que nem ouro. Acomodou-se na pensão da senhora Inácia, prima de dona Mirtes.
Apesar dos laços sanguíneos, as duas mulheres não se bicavam. É que, nos tempos de juventude, a dona da pensão teve um breve, mas caloroso, romance com Joaquim. O problema é que ele já havia firmado compromisso com Mirtes. Esta, apesar de ter ficado possessa com a traição, nunca deixou que o ciúme lhe fizesse sala.
Damião. Pois era esse o nome do novo hóspede, que preferia não sair durante o dia, a não ser quando era dia de faxina na pensão. Nessas ocasiões, ficava em pé na calçada cumprimentando amigavelmente todos que passavam. Se estivesse disposto, caminhava até um bar qualquer, mas evitava passar em frente à igreja, mesmo quando intimado por padre Orlando, que fez questão de conhecer o novo habitante.
— Não acredita em Deus, Damião?
— E por que me pergunta isso, seu padre?
— Nunca o vi na nossa igreja.
— Deus é onipresente, seu padre. Não preciso ir até a sua igreja, quando Ele está em todos os locais.
— Conhece bem a Bíblia, Damião.
— Sempre me interessei por literatura, seu padre.
— Literatura?
— Já são quase onze, preciso me recolher, seu padre. Outra hora continuamos a nossa prosa.
Damião encarou padre Orlando e lançou-lhe um sorriso e, em seguida, lhe deu as costas e foi se recolher aos seus aposentos. Era nítida a expressão de desconfiança do religioso, apesar da falta de argumentos para buscar ajuda na polícia. Seja como for, resolveu usar de sua autoridade e foi ter uma conversa séria com o delegado. No entanto, antes de conseguir chegar à delegacia, foi abordado por duas beatas, que lhe convidaram para almoçar. Sem ter como inventar desculpas, padre Orlando acompanhou as fiéis, ainda mais porque a refeição era do seu agrado: cabrito assado com batatas.
Na noite daquele dia, Damião, como de costume, saiu para caminhar nas ruas quase desertas. Ele parecia mais agitado do que de costume e, quando a madrugada já não era nenhuma menina, desapareceu e nunca mais foi visto.
Dona Mirtes e Inácia, assim que amanheceu, despertaram de um sonho, como se tivessem vivenciado uma tórrida noite de luxúrias. E, por motivo desconhecido, um fedor de enxofre inundou toda cidade de Ibicuitinga durante os sete dias seguinte.
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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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