A noiva grotesca
Último pesadelo traz dente afiado sangrando carótida
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emCertos pesadelos doem nos ossos e na alma.
Era noite. Ele se encontrava dentro de uma igreja iluminada apenas por velas. Caminhava em direção ao altar, onde estava uma figura feminina muito magra, os braços ossudos caídos junto ao corpo. Era pequena, do talhe das mulheres medievais – 1,40 m de altura, por aí. Tinha olhos enormes, de uma tonalidade escura que contrastava com a sua palidez e o encaravam inescrutáveis e sem curiosidade. Na boca aflorava a sugestão de um sorriso enigmático, que fazia lembrar o da Mona Lisa. Vestia um traje de noiva de uma época antiga e trazia na mão direita um buquê de flores brancas em meio às quais se destacava uma rosa púrpura – escarlate ou magenta, não sabia bem como descrever a cor –, poça de sangue em campo de neve.
Ela não demonstrava um pingo de impaciência. “Parece capaz de me esperar para sempre”, pensou, enquanto avançava.
Baixou os olhos e viu que também vestia uma roupa de estilo antigo que se harmonizava com a dela. Olhou seu reflexo em uma superfície metálica e descobriu, horrorizado, que seu rosto estava maquiado como o de um palhaço. Desde criança tivera medo deles, desconhecidos ruidosos com o rosto pintado de branco e uma boca enorme, toda vermelha; com a idade, o medo transformara-se em desconforto sempre que via algum. Compreendia perfeitamente por que Stephen King, no livro A Coisa, retratara a Mal sob a figura de um palhaço.
Mas agora a perturbação cedia lugar ao velho pavor de sua infância. E pior, ele próprio se tornara aquela figura grotesca. Grotesca – era essa a palavra que estava buscando para descrever a situação, a igreja precariamente iluminada, a cerimônia, sua própria figura e a da mulher (?) no altar, a quem passou a designar como A Noiva Grotesca.
Deu mais um passo e, pela primeira vez, os olhos da figura feminina brilharam. O sorriso enigmático abriu-se um pouco e ela estendeu em sua direção as mãos – aquela que empunhava o buquê e a outra, livre, que se crispou em garra.
Acordou gritando.
Ele trabalhava em casa como redator, tinha muito trabalho a fazer, mas nesse dia descartou tudo. Abriu um de seus livros de arte, que trazia reproduções das telas do holandês Rembrandt, e foi direto para a Ronda Noturna, uma das obras-primas do pintor. Ele lera um ensaio de um psicanalista sobre a tela, que destacava um aspecto crucial da obra: a velhice estampada no rosto da menina loura, que a tornava uma velha-criança (o autor chegara a escrever “velha-menina (morta?)”. A luminosidade da personagem inexistia na figura junto ao altar, mas a velhice das feições estava ali, enfatizada, em contraste, pelo meio sorriso.
Abriu outro livro, com reproduções das obras de Diego Velázquez, e procurou a pintura As meninas. Imóvel, com sua aparência de dama em miniatura, a criança loura dava-lhe medo; se, por alguma peritagem da tecnologia contemporânea, a sua imagem se mesclasse à da anã ao lado dela, o resultado se aproximaria (almost, but not quite) da noiva do sonho.
Dando uma guinada em sua investigação, pensou em A Noiva Cadáver, animação dirigida por Tim Burton. Os olhos enormes da protagonista do filme, lembravam os da Noiva Grotesca, e as duas eram pequenas. Mas as semelhanças paravam por aí. A Noiva Cadáver não tinha um pingo de maldade em seus grandes olhos suplicantes e ossos – praticamente tudo o que restava dela, afinal –, enquanto a Noiva Grotesca, com sua sombra de sorriso enigmático e seus olhos reservados, não permitia sequer um ensaio de leitura corporal. E mais, a Noiva Cadáver morria duas vezes na trama, enquanto a Noiva Grotesca, por mais que tivesse a velhice estampada no rosto, a rigor não era velha e sim eterna, como alguma coisa sem começo nem fim, que simplesmente existisse.
À noite, como temia, o pesadelo repetiu-se.
Houve, porém, diferenças sutis. À medida que se aproximava do altar, percebeu que a Noiva Grotesca estava menos pálida e mais forte, como se o medo que ele sentira o dia inteiro a tivesse alimentado. A rosa escarlate pulsava mais intensa entre as flores brancas. Ela abriu mais o sorriso e ele avistou dentes pequeninos como os de um furão. Quando ela estendeu os braços, ele percebeu, horrorizado, que estava quase ao alcance deles. Num grande esforço, conseguiu acordar, novamente aos berros, às 4 da manhã. Não dormiu mais.
Tão logo amanheceu, ele partiu em busca da proteção de santos, orixás, do Senhor Jesus, tanto fazia, o importante era se livrar de tudo aquilo. Numa igreja católica, o padre sugeriu que rezasse três Aves Marias e um Padre Nosso; num templo neopentescostal, o pastor disse-lhe para pagar o dízimo, isso era fundamental, e repetir três vezes antes de dormir: “O sangue de Jesus tem poder”. O homem também tentou golpeá-lo com uma Bíblia, “para castigar os exus”, mas ele resistiu, sabia que o mal ainda não o havia tocado. Num terreiro de candomblé, sugeriram-lhe fazer um ebó elaborado, com tudo a que os orixás tinham direito, e um guru de ioga propôs que meditasse sobre o bem e o mal e praticasse sexo tântrico. Como se ele, apavorado como estava, estivesse em condições de meditar e encarar uma transa, rápida ou demorada!
À noite, quando o pesadelo se repetiu, ele chegou ao alcance da Noiva Grotesca. Foi seguro por braços surpreendentemente fortes e viu o sorriso enigmático desaparecer, já não havia enigma a ser decifrado. A boca de dentes pequeninos transformou-se em uma grande boca de palhaço, borrada de vermelho, na qual sobressaíam caninos afiados. As duas presas aproximaram-se de sua carótida. Ainda pensou “Eu sabia!”, num misto de triunfo e desespero, e depois mais nada.