O velório de tia Brotinho
Despedida de corpo é marcada por presença de louco e cantada de primo
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Tia Brotinho, que não era pizza de verdade nem cocotinha de Copacabana ou Ipanema, mas adorava uma farra, teve uma vida sofrida e, por isso, precisou comer o pão que o Diabo amassou. A despeito de tamanha penúria, fazia questão de manter a categoria e dizia para os filhos:
— Se o Diabo amassou ou não, isso é o de menos. O importante é que temos pão.
Por falar na prole da tia Brotinho, dos cinco filhos, nenhum presta. E não digo isso por despeito, mas porque conheço todos desde o tempo em que éramos miúdos. Tanto é que, mal a mulher morreu, os herdeiros correram para ver quem ficava com o cofre de barro em formato de porco, que titia guardava na cabeceira da cama.
Mas deixemos de lado esses trastes, pois quero falar de algo mais interessante: o velório. Ainda mais porque tia Brotinho, em seu último ato, não poderia passar despercebida. Só que até eu, tão acostumada com os causos da minha parenta, seria incapaz de imaginar algo tão esdrúxulo como o que aconteceu.
Lá estávamos todos comovidos com a repentina partida da minha tia, quando, sem avisar ou mesmo pedir licença, adentrou um doido na capela. O sujeito passou direto por todos e foi se agarrar ao caixão.
— ELZAAAAAA! Que saudade! Por que você fez isso comigo?
Ficamos surpresos, ainda mais porque tia Brotinho se chamava Maria de Fátima. Além do mais, o caixão não estava lacrado, o que permitia ter uma visão nítida do rosto da finada. Foi aí que me atentei sobre o fato de haver mais dois velórios nas capelas adjacentes.
— Licença, creio que o senhor está enganado de velório.
O homem me encarou de modo que percebi seus olhos avermelhados, uma mistura de emoção e algumas doses de destilados, que eram generosamente exaladas pelas narinas e boca. Em seguida, ele voltou a se debruçar sobre titia.
— ELZAAAAAA!
Sem mais ter o que dizer, tratei de me afastar. Vá que o cara fosse algum maluco. Por sorte, não demorou mais do que dois ou três minutos e, pasmem, foi-se embora da mesma forma que entrou.
Jonas, um dos imprestáveis herdeiros da defunta, aproveitou o instante para se aproximar.
— Que louco, né, Ana Paula?
Preferi responder apenas com um sinal positivo de cabeça. Não estava querendo papo com meu primo, ainda mais porque ele sempre encabeçou a lista dos pilantras da família. Ih, não adiantou! Pois fique você sabendo que o cretino, ainda por cima, se insinuou para mim.
— Sabe, Ana Paula, andei pensando… Sabe, a gente é primo, né? Então, você sabe, né? Primos costumam sair de vez em quando. Dizem que sempre rola aquela atração. Você sabe, né?
Devo ter feito cara de surpresa, boquiaberta que fiquei ao ouvir aquela proposta indecente justamente em momento de tanta dor. Não disse palavra, o que, parece, foi entendido de forma equivocada pelo salafrário.
— Então, a gente se fala depois, prima.
Tratei de voltar meus pensamentos para tia Brotinho. Até me aproximei dela e mencionei bem perto do seu ouvido: “Titia, espero que você não tenha escutado isso.”
Quando a noite tomou conta do lugar, eis que o doido reapareceu do nada. A mesma ladainha, o tipo foi fazer aquele teatro agarrado ao caixão da tia Brotinho.
— ELZAAAAAA! Por que você foi fazer isso comigo?
Dessa vez, nem me dei ao trabalho de ir conversar com ele. Como titia sempre me disse, não adianta tentar convencer que o louco é louco. Então, preferi deixá-lo com sua loucura, mesmo porque tia Brotinho, espirituosa que sempre foi, certamente, estava se divertindo com aquele penetra sem-noção.
O enterro se deu na manhã seguinte. O rapaz fez questão de fazer um discurso para a tal Elza. Para evitar pendengas, ninguém impediu o sujeito. Logo após a última pá de cal, o enlutado foi embora sem se despedir.
Curiosa que fiquei, fui conversar com os parentes dos outros defuntos. Para minha surpresa, não havia qualquer Elza entre os mortos. Para piorar a situação, os falecidos eram do sexo masculino, sendo um velho e outro jovem de pouco mais de vinte anos.
Os meses seguintes transcorreram rotineiramente. É verdade que Jonas me chamou para sair duas ou três vezes, até que desistiu. O danado não vale o que pesa, apesar da aparência agradável. Mas tenho cá meus princípios, e tia Brotinho não merecia tamanha desfeita.
Quanto ao maluco do velório, pensei que jamais iria vê-lo até que, na semana passada, o encontrei de braços dados a uma velha, que andava com dificuldade, numa praça aqui na Asa Norte,. O homem a ajudou a se sentar ao meu lado, enquanto foi comprar um picolé de um vendedor ambulante. Assim que retornou, ele fez questão de retirar o invólucro do picolé e o entregou à senhora.
— Elza, cuidado pra não deixar cair. Quer que eu segure pra você?
O homem retornou para pagar o vendedor. Enquanto isso, a mulher se virou para mim e sorriu. Retribuí com o meu melhor sorriso, enquanto ela pousou sua mão sobre a minha.
— Sabe, minha filha, o Augusto sempre foi assim comigo.
— Augusto?
— É. Augusto é o meu neto mais próximo.
— Ah, ele é seu neto?
— Sim. E você acredita que, não faz muito tempo, ele pensou que eu havia morrido?
Tentei fazer cara de surpresa. Não sei se consegui convencer a minha mais nova amiga. Seja como for, ela me contou como se desenrolou o imbróglio e, talvez um dia, eu escreva sobre o assunto.
………………………
Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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