O gaucho e o gaúcho
Cavalo e égua ficam frustrados em briga de peões e nem dão umazinha
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Foi na fronteira do Brasil com o Uruguai que o gaúcho e o gaucho se esbarraram. Um seguia para plagas uruguaias, o outro, para as coxilhas do sul do Brasil. Ambos pilchados – mas não para ficar faceiros, apenas roupa de lidar com o gado. Ambos morenos, com uma boa dose de sangue nativo. Seus ancestrais eram indígenas e ibéricos, portugueses e charruas de um lado, espanhóis e charruas do outro; talvez fossem primos distantes. Estavam separados por séculos de colonização e pelo idioma. Estavam mesmo?
O gaúcho e o gaucho haviam passado algum tempo em uma bailanta, um em um boliche, o outro em um bolicho. Depois dormiram um pouco, acordaram, prepararam e tomaram um mate, arriaram os cavalos – um redomón e um redomão, animais esplêndidos, macho e fêmea, ainda não domados plenamente – e seguiram viagem. A trilha na fronteira era estreita, mal dava para um cavaleiro. Entreolharam-se, não gostaram da postura desafiadora do homem que viam pela frente. Ainda assim, ensaiaram um arremedo de sorriso e falaram praticamente ao mesmo tempo:
– Pasaje, che.
– Passagem, tchê.
Nenhum deles se moveu. O sorriso foi engolido. Os dentes voltaram a aparecer, mas agora num rosnado:
– Sai, índio.
– Salí, indio.
O redomón e o redomão imóveis, contidos por seus donos, agora silenciosos.
O silêncio durou pouco, chegara a hora das ofensas. Era um ritual milenar de guerreiros que se enfrentavam, destinado a proclamar a própria bravura e a humilhar o inimigo, a desqualificá-lo como homem. Isso acontecera, acontecia e aconteceria em todos os campos de batalha. Gregos contra troianos, gregos contra persas, espartanos contra atenienses, charruas contra guaranis, luso-brasileiros contra orientais – palavrões sempre cruzavam os ares antes que as armas se chocassem. Agora, era a vez do gaúcho e do gaucho.
– Arrombado!
– Arrombau es usted!
A troca de ofensas prosseguiu.
– Viado!
– Viau es usted!
– Boludo!
– Boludo é você!
– Hijo de puta!
– Filho da puta!
Puta era uma palavra dos dois idiomas, hijo de puta/filho da puta ofensa grave em ambos, não havia como ignorá-la. O peão e o peón fizeram galopar as montarias e avançaram um em direção ao outro, uma mão na faca, a outra no cuchillo.
Este texto poderia terminar com o som de aço contra aço e o reluzir das lâminas, que logo se tingiriam de vermelho. Mas os deuses do entrevero estavam desatentos, ou entediados, e os animais passaram colados, roçando-se, quase arremessando os cavaleiros no solo. E estes seguiram seu caminho.
Quem não gostou do desfecho foram o redomón/redomão. Enquanto seus donos se encaravam, se desafiavam e trocavam ofensas, o garanhão e a égua haviam simpatizado muuuito um com o outro. E só pensavam em, apesar dos arreios, brincar um pouco, fazer um(a) potrinho(a) que corresse livre pelos pampas, até se tornar um redomón/redomão de responsa. Não deu, que peninha.
Deram relinchos bem bonitos, disseram adeus e foram embora.
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