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Boteco na Asa Sul

Adamastor tenta silenciar zumbido com prescrição ‘médica’ dos tempos da vó

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Sabe aquela sensação de que algo entrou no ouvido? Não bobagens que entram e saem, mas algo concreto. Digo, concreto no sentido palpável, não massa de cimento para chapiscar paredes. Zumbido! Lembrei! Eis o verbete.

— Isso é coisa de velho, Adamastor.

Tal diagnóstico foi proferido por Paulo, vulgo Paulete, dono do boteco perto do meu apartamento, na Asa Sul. Grande sujeito, anda com um pano de prato no ombro esquerdo, que usa como arma para tirar a poeira ou, então, acertar as moscas que cismam em pousar sobre o balcão. Mas não se engane, pois o sujeito, além de otorrinolaringologista, é desinibido ao ponto de prescrever medicamentos apropriados para qualquer depressão, inclusive dor de cotovelo, aquela mesma que costuma ser proveniente do coração.

— Adamastor, tenho uma cachacinha da boa, que vai resolver seu problema. Basta colocar algumas gotinhas de limão e mel a gosto. Dois goles curtos a cada cinco minutos durante duas horas sentado naquele banco mais ao fundo.

— Mas resolve mesmo, Paulete?

— Ô, Adamastor, tá duvidando?

Isso aconteceu quando a Judite… Ah, Judite, por que me abandonastes? O que o Gilmar tem que eu não tenho? Dinheiro? Tem razão. Mas e o amor? Onde é que fica o amor?

Tempos de Judite. Por onde será que anda a mulher? Soube que largou o Gilmar, pois vi o gajo, não faz muito tempo, recebendo o mesmo tratamento que recebi. O gajo parece que ficou pior do que eu, pois a medicação durou quase dois meses pelas madrugadas adentro no boteco do Paulete.

Frequento o local por praticidade, já que é quase extensão do meu ser. A cerveja é sempre gelada, o tira-gosto não é dos melhores, mas a freguesia, tirando um ou outro chato de galocha, não é das piores.

— Paulete, desce aquela gelada!

— Ô, Plínio, tu pensa que sou trouxa, é?

Plínio, um dos tais malas, tem fama de caloteiro. Não que não pague, mas parece que possui certo preconceito em meter a mão no próprio bolso, ainda mais quando vislumbra a menor possibilidade de fiado. Meu vizinho de porta, não raro, me pede uma xícara de café ou açúcar. Ainda menos raro, pede as duas.

Teófilo é um dos ilustres frequentadores do bar do Paulete. Um tipo vulgar, que poderia facilmente ser confundido com qualquer outro vira-lata das redondezas. Convive pacificamente com Napoleão, felino de hábitos ociosos como muitos de sua espécie. Não há quem nunca os tenha visto dividindo um ovo colorido, generosamente ofertado pelo dono do estabelecimento, que tem o costume de fazer certas confidências aos dois.

— Se a clientela fosse que nem vocês, aqui seria uma paz completa.

Carol, mulher com certos atrativos, não sai do local. Tem até mesa cativa, onde lhe é servido café ou guaraná, dependendo da hora do dia. Seu sonho parece que era ser veterinária, mas o vestibular tem lá suas artimanhas. Não conseguiu entrar na faculdade, o que não a impediu, de certo modo, trabalhar com 25 espécies diferentes de animais.

Acredita que o zumbido voltou? Isso, aliás, estava me consumindo. Imaginei até que a coisa pudesse desandar para algo mais grave. Pensando no pior, fui me consultar com o Paulete.

— Ô, Adamastor, já falei que não pode misturar remédio pra labirintite com álcool. Você vai acabar dormindo de novo aqui no meu boteco.

Diante da recomendação, voltei para meu cafofo, onde passei o dia deitado. Afinal, não dá para contrariar o doutor.

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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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