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Planaltina

História de Gervásio, que renegou netas negras até ir ao encontro de Deus

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Gervásio abriu os olhos e viu uma luz branca. Sentiu que, finalmente, havia chegado ao seu destino, como sua mãe lhe contara nos tempos de menino.

— Seja bom, meu filho, que um dia o Senhor o chamará.

O homem sorriu aquele sorriso de dever cumprido quando, então, percebeu uma voz feminina. Seria Deus uma mulher? A forte luz sob seu rosto o impediu de ver com clareza, mas notou um vulto todo de branco vindo em sua direção. Um calafrio percorreu por toda sua espinha, quando ouviu uma voz doce como a de Veridiana, sua amada esposa.

— Senhor Gervásio, vou acompanhá-lo até o próximo andar.

O sujeito pensou que a mulher fosse um anjo, que certamente o levaria até o Senhor. Sua mãe não havia mentido. Afinal, mães não mentem ou, ao menos, a sua não era afeita a inverdades.

Enquanto aguardava, Gervásio foi tomado por lembranças que o atormentavam há quase cinco anos, quando Fernando, seu primogênito, se envolveu com Laura, favelada e, pior, preta. E o que parecia apenas mais um namorico, se transformou em paixão, o que, aos olhos de Gervásio, roubou toda a razão do filho, que resolveu se casar com a tal desclassificada.

O homem tentou a todo custo demover Fernando daquela insanidade. Entretanto, jovem que era, o rapaz bateu pé e seguiu firme naquele pensamento, que, aos olhos do pai, só poderia dar no que deu. Pois é, caso já não bastasse expor o nome da família perante a sociedade, alguns meses após o casório, Laura desfilava sua prenhez pelos lados de Planaltina.

Gervásio, apesar de contrariado, jamais expulsou o filho do convívio familiar. Não que ele não merecesse, mas simplesmente porque, bom pai que era, não poderia abandonar a prole por pior que fosse a desobediência. Dessa forma, Fernando continuou com trânsito livre na casa dos pais. Todavia, nada de trazer aquela fulana, ainda mais porque carregava o fruto do pecado.

Por mais que tentasse desviar o pensamento, Gervásio tinha pesadelos corriqueiros com aquela mucama parindo seres disformes. Certa vez, o pobre homem se deparou com a visão de Laura de cócoras, gargalhando com todos aqueles dentes alvos e beiços grossos, enquanto uma criatura horrenda, da cor de piche, era expelida pelas partes pudendas da mulher. Aquele ser repugnante não poderia ser humano.

Gervásio se recordava da visita do filho numa quarta-feira, dia 18 de julho. Fernando parecia radiante, pois fora contar para a família sobre o nascimento não de um mestiço, mas de três criaturas do sexo feminino. Ironia maior é que aqueles seres carregados na cor haviam sido expelidos das entranhas de Laura justamente no dia do aniversário de 58 anos do sogro.

Veridiana, para não desagradar o marido, conteve a alegria diante da notícia trazida pelo filho. Entretanto, era nítida em seus olhos castanhos a felicidade de ser avó e, melhor ainda, de três meninas. A mulher, apesar da ânsia de correr para o hospital e conhecer as netas, preferiu manter a cabeça baixa para que Gervásio não notasse as lágrimas que escorreram por sua face.

Os dias que se seguiram foram repletos de encenações. Gervásio fingia que desconhecia o nascimento da prole de Laura, Veridiana tentava imaginar como eram os rostinhos das netas. Avó que era, precisava ajudar a cuidar dos bebês, sem contar a ânsia de pegá-los no colo, niná-los e lhes contar as mesmas histórias que aprendeu quando ela, ainda neném, fora tantas vezes colocada para dormir no colo da mãe.

Conheceu o futuro marido em novembro de 1911, pouco antes dos 17 anos. Um ano após, casou-se com Gervásio, que, a princípio, precisou convencer o pai de Veridiana de que era capaz de sustentar uma família. Caráter, nem o futuro sogro duvidava que ele possuísse, apesar de divergências políticas.

Desconfiança superada, o sogro até ajudou o futuro genro a arrumar uma casa próxima à sua. Desse modo, a família continuaria próxima, e os vínculos com o novo membro seriam fortalecidos. E foi o que ocorreu, com almoços aos domingos, ora na residência do sogro, ora no lar do novo casal.

Os primeiros enjoos de Veridiana ocorreram no início do verão. Ela estava ajudando sua mãe a preparar o ensopado, quando precisou correr para o banheiro. Fora os respingos, bastou que a mulher desse descarga na privada. Foi amparada pela mãe, que pareceu feliz.

— Vá se deitar, que eu cuido do almoço. A primeira vez parece o fim do mundo, mas logo você se acostuma.

Fernando nasceu em meados do ano seguinte. Robusto que nem o pai, os olhos eram de Veridiana. Primeiro filho, primeiro neto, primeiro tudo, o menino desfrutou de todos os mimos.

Quando Fernando começou a dar os primeiros passos, Veridiana sentiu novos enjoos, que perduraram pelos meses seguintes. O marido passava o dia inteiro fora, mesmo porque precisava garantir que nada faltasse para a família, que, em breve, ficaria maior. O que Gervásio não esperava é que a esposa parisse gêmeos: Juliana e José.

O parto, além de difícil, fez com que Veridiana não pudesse ter mais filhos. Ela ficou triste, pois esperava poder encher a casa com pelo menos mais três crianças. Entretanto, religiosa que era, entendeu aquilo como vontade de Deus e se conformou. E foi com esse sentimento de resignação que, em 1918, enterrou os dois pequenos, vitimizados pela gripe espanhola. Fernando, apesar de afetado pela terrível doença, conseguiu resistir.

Gervásio se revoltou com Deus nessa época, recusando-se a frequentar a igreja por longo período, até que, já no início de 1920, foi levado pelas mãos da esposa. O homem, a princípio, se sentiu envergonhado aos olhos do padre. Coisa breve, já que o pároco o acolheu de braços abertos.

— Gervásio, meu filho, apesar de muitas vezes não os entender, jamais devemos contestar os desígnios de Deus.

Fernando cresceu rápido. Quando os pais perceberam, ele já se transformara em um belo rapaz de cabelos negros. Pouco mais alto do que Gervásio, atraía os olhares das moças e, não tardou, começou a se interessar por Maria de Lourdes, que morava na rua ao lado. A garota parecia corresponder ao interesse do rapaz, e tudo encaminhava para firmar compromisso.

A primeira a notar o interesse do filho por Maria de Lourdes foi Veridiana. Não disse palavra, entendia que, aos 21 anos, Fernando havia se tornado homem. E, quando pensou em conversar com Gervásio sobre o acontecimento, o filho decidiu abrir o coração.

— Mãe, acho que me apaixonei.

— Que notícia boa, meu filho! Bem que notei seu modo de olhar para a Maria de Lourdes.

— Não é por ela que estou apaixonado, minha mãe.

— Não? E por quem é então?

— Pela Laura.

— Laura? Não me lembro de nenhuma Laura, Fernando.

— É uma moça que conheci há pouco tempo. A senhora não conhece.

— Pois traga essa moça aqui para que seu pai e eu possamos conhecê-la.

— Ainda não conversei com os pais dela, mamãe.

— Pois se você gosta mesmo dessa moça, vá conversar primeiro com os pais dela. E depois a traga aqui em casa, que tenho certeza de que seu pai aprovará o namoro.

Quase um mês após, Fernando retomou a conversa com a mãe. Disse-lhe que o namoro estava firme, inclusive com a aprovação dos pais de Laura. Era hora de, finalmente, Veridiana e Gervásio conhecer a futura nora.

— Pode deixar, meu filho, que vou conversar com seu pai ainda hoje.

Veridiana, ao se deitar naquela noite, puxou assunto com o marido. Contou-lhe as novidades. Gervásio ficou surpreso, mas não desaprovou a conduta do filho. O homem disse para a esposa que poderia marcar o almoço para o sábado seguinte. E que viessem também os pais da moça para conhecê-los. Desse modo, tudo ficaria acertado.

Fernando recebeu a notícia com entusiasmo e, no mesmo dia, foi contá-la para Laura. Ela ficou encarregada de conversar com os pais, que aceitaram de bom grado o convite.

Além da macarronada ao molho de tomate, foi servido vinho tinto. Os jovens e as esposas tomaram suco de caju. Entre garfadas e goles dos presentes, Gervásio quase não tocou na comida. Era nítido o descontentamento do dono da casa, enquanto Veridiana procurava afastar qualquer constrangimento colocando mais comida nos pratos e enchendo os copos dos convidados.

À noite, quando já estavam recolhidos em seus aposentos, Gervásio e Veridiana se entreolharam. O marido parecia furioso e, não tardou, despejou sobre a mulher todo seu desapontamento.

— Uma preta? Como é que o Fernando me aparece aqui em casa com uma preta?

A despeito da desaprovação do pai, o coração do filho falou mais alto e ele prosseguiu com o namoro. Veridiana até tentou demover Fernando daquele amor. Menos por preconceito, mais para acabar com a discórdia em seu lar. Foi em vão, já que os jovens logo firmaram noivado e se casaram em maio.

Nunca houve embate explícito entre Gervásio e Fernando, apesar dos desvios de olhares todas as vezes em que o filho mencionava a agora esposa. O pai chegou a desejar que a nora fosse abalroada por um bonde desgovernado. Que a mulher não sofresse, mas perdesse a vida para, assim, livrar a família de um mal maior.

Os pensamentos de Gervásio não surtiram efeito. Tanto é que, não tardou, Laura engravidou. Que frutos esperar do ventre de uma preta? O sujeito tinha pesadelos mesmo quando acordado, até que o momento chegou e a ninhada, em número de três, foi jogada neste mundo.

Gervásio, diante do espelho, jurou que jamais iria ver aquelas aberrações. Ele comunicou sua decisão à Veridiana, que, cabeça baixa, acatou. Que ela pusesse Fernando a par. E foi o que a mulher fez dois dias após.

Fernando, a princípio, quis explodir. Entretanto, ao perceber a tristeza no rosto da mãe, conteve seu ímpeto e chorou. Chorou copiosamente nos braços da mãe, que aninhou o rebento como outrora o fizera a cada percalço que o menino teve na vida.

— O seu pai é um homem bom, meu filho. Essa situação vai passar. Tenhamos fé em Deus, que passa.

Não passou. Tanto é que, para conhecer as netas, Veridiana precisou fazê-lo escondida, enquanto o esposo estava no trabalho. E assim prosseguiu, inclusive recebendo a visita das meninas durante o dia. Mas, assim que a hora do retorno de Gervásio se aproximava, Laura ou Fernando ia buscar as filhas.

Não se sabe se Gervásio desconfiava. Na dúvida, Veridiana carregava no alho a janta para sobrepor qualquer resquício de cheiro de criança. Ela, no entanto, levava chorosa aqueles momentos, inclusive buscando nas narinas o cheiro das meninas.

Veridiana pensou em pedir conselho ao padre. Homem sábio que era, certamente abriria o coração de Gervásio. Todavia, antes que pudesse agir, viu o marido contorcer o rosto e tombar sobre o prato de sopa. Desesperada, tentou acudi-lo, mas não soube como. Correu para casa do filho, que ficava duas ruas abaixo.

— Pai! Pai! – Fernando gritou quando viu o corpo de Gervásio caído.

Com a ajuda dos vizinhos, Gervásio foi socorrido ao hospital. O médico foi chamado e, ao se deparar com o quadro do paciente, mandou os enfermeiros o colocarem numa maca. Não teve dúvida. Típico caso de derrame cerebral. O prognóstico não era dos melhores.

Há meses, Gervásio pensava em procurar a nora e, principalmente, as netas. Ele, que nunca as havia visto, desejava pegá-las no colo. Nem mesmo sabia o nome das crianças. Decidido, pousou a colher sobre a mesa e, ao tentar se erguer da cadeira, tudo ficou escuro.

Agora sozinho no quarto, Gervásio conversava com Deus. Não pedia conselhos, mas perdão. Como é que ele, um homem bom, não permitiu a aproximação da nora e, principalmente, das netas? Como elas o receberiam? A dúvida o transtornou até que o homem fechou os olhos pela última vez.

O enterro se deu dois dias após. Lá estavam Veridiana, Fernando, alguns familiares e amigos. Num canto, Laura segurava as mãos das filhas, enquanto lhes contava sobre o avô.

— Minhas filhas, aquele é o vovô. Ele as amava muito.

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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’

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