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Abóbadas

A visão, em conexão direta com a mente, contida na redoma craniana, infinita

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Alguns esclarecimentos prévios.

Não conheço praticamente nada de biologia, então relevem prováveis enganos. Não guglei em busca de informações balizadoras. Não sei se acontece com todo mundo, espero que sim. Não lembro quando percebi, acho que foi há pouco tempo, não tenho certeza, com a idade, minha memória virou uma lama. Em especial, se alguém souber que se trata de um sintoma de demência ou de um tumor no cérebro, por favor, não me conte.

Agora, o texto.

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Muitas vezes, quando vou dormir, meus olhos como que mergulham suavemente nos líquidos oculares (são dois, o humor vítreo e o humor aquoso). Em outras, porém, deparo-me com a abóbada.

O teto e as paredes parecem feitos de argila escura e estão repletos de signos aparentemente cuneiformes, como as dos sumérios e outras culturas da antiga Mesopotâmia. Mas isso diz respeito apenas à forma de inscrição nesse material; os símbolos remetem às mais diversas manifestações culturais desse todo desigual chamado de espécie humana.

Alguns lembram pinturas rupestres, desde as mais rudimentares até as elegantes representações nas paredes das cavernas de Altamira e Lascaux; outros, desenhos infantis e formas geométricas; há folhagens, antigas armas de corte, esboços de hieróglifos egípcios, de divindades hindus, maias e astecas, de figuras heráldicas presentes nos brasões da Europa medieval; e tudo isso vai se modificando continuamente sem jamais se tornar algo acabado, como astros imperfeitos que se deslocam pela abóbada celeste.

Basta um piscar para que desapareçam. Mas às vezes, depois de outra piscada, retornam – não os mesmos, mas gêmeos quase idênticos, sempre em procissão pela abóbada dos meus olhos, a preencher meu fim de vigília.

A contemplação de tudo isso conduziu-me a algumas especulações. E se, no mito platônico da Caverna, os homens relutassem em se libertar não apenas por temer as dores da descoberta da luminosidade, mas também pelo receio de perder para sempre a visão das imagens fugidias inscritas no teto e nas paredes? Imagens desconhecidas, não tinham com que compará-las, mas cuja importância intuíam? E se estivessem gestando, no escuro, o que viria a existir? E se, suspeitando disso, não quisessem trocar a condição de demiurgos, ainda que de imperfeições, pela de simples criaturas?

A segunda especulação remete à própria abóbada. Nas catedrais, ela pretende representar, em um espaço necessariamente finito, a infinitude da abóbada celeste, criação divina. Pois bem, sou incapaz de perceber os limites de “minha” abóbada ocular, em conexão direta com a mente, contida em outra abóbada, a craniana; nada impede que, em teoria, ela seja infinita. Em que medida isso faz de mim o criador de algo frágil, que se desfaz com um piscar de olhos, mas incomensurável, que recobre o universo e acompanha seus desdobramentos, à semelhança do “Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto”, do conto Sobre o Rigor na Ciência, de Jorge Luís Borges?

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